Artigo

Da África e sobre a África - Textos de lá e de cá

Publicação original: 2012por Emílila Machado, Mariucha Rocha, Ninfa Parreiras e Vânia Salek

A obra de Joel Rufino dos Santos

A década de 1970 ficou conhecida como um momento de apogeu da literatura infantil e juvenil no Brasil. Alguns estudiosos chamam aquele período de boom da literatura infantil, devido ao crescimento da produção editorial, ao surgimento de autores que ficaram consagrados por suas publicações cheias de fantasia e de uma linguagem absolutamente voltada ao universo da criança. Foi certamente, um período de consolidação de uma literatura para a infância comprometida com a leitura de entretenimento.

Joel Rufino dos Santos, carioca, professor de História e de Literatura, além de ser um dos consagrados autores que começaram a publicar na década de 1970, pode ser considerado um pioneiro nas abordagens em seus livros sobre a questão das raízes africanas na literatura brasileira para os pequenos leitores. Em especial, notamos em sua obra traços que chegaram até os livros por meio do folclore, da tradição oral. Ele criou histórias em que o negro é um protagonista de relevo e em que palavras, expressões e costumes de herança africana são valorizados. Sua obra literária conta com narrativas curtas, outras mais extensas, em capítulos, dirigidas às crianças e aos jovens.

Joel fez os estudos secundários pagos por seu próprio trabalho, o que sinaliza um compromisso com sua a transformação da vida de família humilde. Recebeu os títulos de Notório Saber e Alta Qualificação em História e é doutor em Comunicação e Cultura. Lecionou Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Federal do Rio de Janeiro. Exilado político de 1964 a 1965 e preso político de 1972 a 1974, sua obra u1trapa 70 livros publicados, dentre estudos históricos de ciência política, romances, novelas e contos. Sua literatura para criança, e jovens aclamada pela crítica especializada, foi diversas, vezes premiada, alcançou expressivas, tiragens, inúmeras, reedições e traduções. Desde que começou a publicar na revista Recreio, (no final dos anos, 1970), são dezenas de histórias, com um elemento comum:  a fabulação de origem popular, especialmentenegra e ameríndia.

Joel publicouos seus Contos na revista Recreio, narevista Nova EscoIa, além de revistas latino-americanas. Alguns dos seus textos foram adaptados para o teatro e a televisão. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, dentre outros, musicaram suas histórias.

Da prisão, de 1972 a 1974, Joelescreveu cartas aofilho, Nelson (então com 8ano), quando falava da sua rotina de preso, dos companheiros de cela e dos sonhos de jovem pai afastado do filho. Essas cartas, (guardadas pela esposa de Joel) foram reunidas mais tarde na obra Quando eu voltei, tive uma surpresa: (Cartas, para Nelson), Prêmio Orígenes, Lessa, como o Melhor Livro para Jovens, da FNLIJ, em 2000. Éconsiderada uma obra de caráter não somente histórico, como literário, metalinguístico e memorialístico. Enquanto esteve preso, dedicou-se a estudos, de cultura popular, especialmente às matrizes ameríndia e afro-brasileira, o que consolidaria as primeiras tendências da sua literatura.

Na década de 1980, Joel ingressou na ONG Institutode Estudos da Religião –Iser, quando coordenou o projeto Quanto Vale uma Criança Negra - trabalho com crianças, desfavorecidas na Produção de textos literários. Foi um dos primeiros, a vincular-se à Ashoka Foundation na América do Sul. Na mesma ocasião, integrou a coordenação da conhecida Escola para Meninos de Rua Ti, Ciata, em que a invenção literária funcionava como eixo para os conteúdos pedagógicos. Foi também diretor do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, onde criou um programa de visitas guiadas e teatro para crianças e adolescentes de favelas. Ali idealizou o Museu de Brincar, com a coleção de brinquedos populares em vias de desaparecimento.

Ocupou diversos cargos públicos, alguns relacionados à defesa de populações desfavorecidas, aos direitos humanos e às crianças em situação de risco. Sua predileção à cultura popular tem correspondência na sua vida pública. No plano federal, Joel foi presidente da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, encarregada das políticas públicas para a população negra, onde iniciou a titulação de terras de comunidades remanescentes de quilombos. No plano estadual, foi membro do Conselho Estadual de Cultura, subsecretário de Defesa e Promoção das Populações Negras, superintendente de Cultura, subsecretário de Justiça e Direitos Humanos e, por fim, diretor de Comunicação Social do Tribunal de Justiça. No internacional, representou o Brasil no Comitê Científico Internacional para o programa Rota do Escravo, da Unesco. Foi ainda, por vários anos, consultor brasileiro do programa Escolas Associadas, da Unesco.

Na literatura, Joel revela uma linguagem viva, próxima da língua falada. Sem ser piegas nem pitoresco, Joel tem um estilo próprio traduzido na expressão adotada para as narrativas, em que o leitor se sente dentro da história, tal a naturalidade dos diálogos e a verossimilhança das suas obras. Na novela O caçador de lobisomem, por exemplo, o narrador nos leva para dentro da história.

Como professor de História do Brasil, Joel adquiriu uma experiência que, certamente, lhe possibilitou um olhar investigativo e, ao mesmo tempo, cuidadoso no estudo da vida brasileira. Ao desviar-se da "história oficial", privilegia o ponto de vista dos excluídos e marginalizados. Com isso, surge uma vertente importante da sua obra: as novelas históricas, nas quais valoriza o herói popular, como em O soldado que não era, Quatro dias de rebelião, O dia em que o povo ganhou e Zumbi.

Sua abordagem temática das minorias sociais (índios, negros e mulheres) poderia ter construído uma obra marcada por conselhos, moralismos, ou até mesmo de caráter panfletário. No entanto, não foi o que aconteceu, um tema trabalhado por Joel surge de dentro da história, elaborado pelo foco narrativo, o que impede qualquer tom professoral. Não é algo que vem de fora, com uma intenção, não existe ali a priori. É algo que está metido com a história, nasceu com ela. Isso contagia o leitor e o envolve, o afeta na história.

Há, ainda, um traço da sua obra de textos não ficcionais: a sua habilidade narrativa que, somada à pesquisa e ao dom argumentativo, faz florescer um texto histórico instigante. Assim, o adolescente e o adulto leem com desenvoltura as obras não ficcionais de Joel: O que é racismo, A história do Brasil, A história política do futebol brasileiro.

O refinado humor aparece nas suas narrativas, inclusive nas mais densas e conflitivas. Ele não abandona o riso, a ironia sutil que questiona as regras e as relações de poder. Conseguimos imaginar um marinheiro que, em vez de um boné, resolve que deve usar um passarinho na cabeça? Pois é, Joel busca exemplos que se aproximam do nonsense, do gosto estapafúrdio e popular, que não se explica pela razão, mas pela emoção.

Uma característica importante é a sua facilidade de dialogar com crianças pequenas e com jovens. A obra de Joel tem trânsito garantido entre os leitores mais diferentes, porque ele sabe contar histórias com as opções mais acertadas na arquitetura narrativa, de modo a fazer que seu leitor preferencial se sinta inteligente, participante da trama construída. Tomamos como exemplo A Pirilampeia e os dois meninos de Tatipurum, em que o autor mostra - obviamente sem nomenclatura - aos leitores miúdos o que é ponto de vista e como ele é absolutamente relativo. Bela obra de construção metalinguística! Já em O noivo da cutia, O machismo é questionado de forma sutil e engraçada, numa narrativa breve e envolvente.

Mais além da produção dirigida a esse público, Joel possui uma obra de ensaios dirigidos aos adultos, sobre literatura, cultura, leitura, questões étnicas e sociais. Isso comprova o compromisso ético e social desse intelectual que presidiu a Fundação Palmares e tem contribuído para o esclarecimento da importância e da diversidade da África na cultura nacional. Algumas de suas obras para adultos: Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres (Global); Quem ama literatura não estuda literatura (Rocco).

Na literatura infantil, a COLEÇÃO CURUPlRA, composta de seis títulos, publicada pela editora Ática, na década de 1980, traz relatos caracterizados pelo humor fino, pela linguagem coloquial e lúdica e por situações familiares à cultura popular: crenças, lendas ... História de Trancoso, O saci e o curupira, A botija de ouro, Cururu virou pajé, Dudu Calunga e Rainha Quiximbi. Ilustradas por Zeflávio Teixeira, em tons fortes e contrastantes, nos colocam em contato com personagens engraçadas, cheias de sabedoria popular. Veja a abertura da história de Dudu Calunga (1986): "Festão animado aquele! Gente miúda, gente graúda, branco, preto, café com leite, menino de chupeta, vovó de cachimbo... Cê precisava ver."

Nota-se que há uma descontração, um envolvimento gostoso entre as pessoas que são surpreendidas pela presença de Dudu Calunga. Quem era esse protagonista tão misterioso? Os pais de santo, Ossanha, as ialês, o peji e os orixás vão chegando de um modo natural e espontâneo, sem forçar a leitura nem a abordagem de conteúdos místicos e culturais. Há toda uma celebração de um ritual do candomblé. E ainda tem o pandeiro, paquete-papáquete-páquete-papáquete!, que traz a musicalidade, a dança, os trejeitos de corpo, os movimentos, os ritmos. As personagens negras, mulatas e brancas não são o motivo da obra. Elas emergem naturalmente na narrativa, fazem parte de uma festança que é para todos.

Em Histórias de Trancoso (1983), reparamos o uso de palavras como moringa, nhonhô, jabá, jurubeba. E ainda o uso de ditos populares: "Jacaré achou? Nem ele." Uma história de esperteza, que nos deixa a refletir sobre a malandragem, a trapaça ... e nos remete também a elementos que vivem em nós por causa da vinda dos africanos ao Brasil. Oque há de original no texto de Joel é a falta de apelos, a justeza com que o autor introduz uma palavra, uma tradição, uma crença.

 A botija de ouro (1984) abre a narrativa assim: "Era uma vez uma escravinha que não tinha nome. Quando ela foi comprada, esqueceram de perguntar o nome dela."

O narrador começa de um jeito maroto, descontraído. Fala de discriminação sem ser moralista e prossegue para contar a história daquela escrava que encontra a botija de ouro dentro de uma parede. Posta no tronco porque não revelou o paradeiro da botija de ouro, foi salva pelos vaga-lumes diversas vezes.

Por um lado, uma denúncia de uma escrava sem nome, sem cidadania, sem direitos civis, por outro lado, a tradição popular, o lado sobrenatural, que a salva do castigo. Importa ressaltar que a narrativa se desenrola bem solta, sem lições de moral.

Na obra Rainha Quiximbi (1986), tomamos contato com o lado sobrenatural dos acontecimentos sem explicação. Uma viúva procura novo companheiro e, de tão pequenininho que fica, desaparece. Em outra empreitada, é ela que diminui de tamanho. Será transformada na Rainha Quiximbi, uma entidade das águas, uma espécie de sereia. Foi o Chibamba, rei das criaturas encantadas, que a levou para a praia. O Chibamba é um remanescente de tradições que vieram da África, assemelha-se à Cuca ou ao Negro Velho. Com muita naturalidade, Joel introduz essas criaturas na história sem forçar a tinta. Além disso, usa expressões como "boca pra que te quero!", que reproduzem ditos e saberes populares. Ele não caracteriza a personagem como negra, ou algo que se passa na história como proveniente da África. São elementos como outros, que têm relevo e graça.

Em Cururu virou Pqjé (1987), o autor se debruça nas nossas origens indígenas. Cria uma história de metamorfoses, de esperteza, em que bichos e humanos dividem a mesma natureza. A presença de Baíra, deus criador e civilizador da cultura tupi-guarani, garante o roubo do fogo. Agilidade e humor marcam essa história cheia de molejos e graça.

O Saci e o Curupira (1984) traz o relato de um casal que vivia às voltas com a fome e a necessidade de ter caça. Envolvem-se com o Saci e o Curupira. Aqui, Joel mostra a discriminação contra as mulheres, sem ser moralista. Éalgo que faz parte da história, não é pretexto para ensinamentos.

Gosto de Africa, ilustrado por Cláudia Scatamacchia, da editora Global, traz As Pérolas de Cadija, O filho de Luisa, A sagrada família, O leão do Mali e Bonsucesso dos pretos e A casa da Flor. A obra é uma mistura de mito e tradições negras com relatos de história do Brasil que abordam questões como a luta contra a escravidão e a liberdade – histórias que mostram situações com gente preta, sem mascarar a etnia negra.

Na verdade, pode-se observar em Gosto de África uma valorização natural de aspectos da cultura negra. As personagens, tradições e crenças estão dentro do contexto das histórias, não há algo forçado nem artificial para tratar do que está relacionado à África e as heranças que temos de lá. Essa é uma das características da obra de Joel.

O presente de Ossanha, da editora Global, baseado numa história do consagrado autor José Lins do Rego apresenta dois mundos e dois meninos. O universo de um menino escravo e a cultura que permeia as relações sobressaem numa narrativa aguçada pela influência da linguagem.

Joel nos transporta para um universo de desprivilegiados. Sua literatura dá status a personagens desconhecidas, negras, pobres. Não notamos um maniqueísmo nem um jogo de escolhas que o leitor terá de fazer, mas, sim, o confronto com realidades paradoxais, antagônicas, presentes numa mesma cultura: a brasileira.

Zumbi, da editora Global, numa narrativa mais extensa, em capítulos, nos leva à biografia daquele que lutou pela liberdade dos negros num país cercado pela escravidão e por injustiças sociais decorrentes do comércio de escravos: Zumbi dos Palmares. Joel questiona a ideologia dominante que sustentou a escravidão, os núcleos familiares, a hierarquia das classes sociais, o poder, a concentração de riqueza nas mãos de poucos etc. Ele nos leva ao interior de uma sociedade moldada por ricos e poderosos, sem lições de moral, sem apelos. O narrador simplesmente nos conduz por uma narrativa fluente e espontânea, não toma partidos, não deprecia nem faz apelos. Conta e deixa fluir a história envolvente e vivaz.

Quando eu voltei, tive uma surpresa: (cartas para Nelson), da editora Rocco, é um testemunho da história do Brasil. Enquanto estava preso, na década de 1970, em São Paulo, Joel escreveu cartas (verdadeiras histórias de amor) ao pequeno filho, Nelson, que estava no Rio de Janeiro. São cartas ao filho como metáforas dirigidas ao nosso país (ainda pequeno e que ia crescer). Joel estava preso como um dos envolvidos no grupo da História Nova, que teve a coragem de contar a história do Brasil que ainda não havia sido feita.

Com lirismo e cuidados, Joel conta ao filho sobre os motivos que o levaram a ficar preso: era um condenado político. Relata situações da história do País, como a vinda dos navios negreiros, histórias de escravidão e outras histórias mais que nos fazem brasileiros. Por sorte, Teresa Garbayo, esposa de Joel, guardou as cartas, que puderam ser organizadas e transformadas em um livro para crianças, jovens e adultos. É uma obra que testemunha a história de um país na luta contra dificuldades diante da liberdade de expressão e da participação social igualitária para brancos, negros, mestiços e outros grupos étnicos.

Se, por um lado, a obra tem um caráter histórico e social relevante, por outro lado, foi feita com lirismo, mostra a marca das memórias no fazer literatura. Abre as portas da intimidade do autor, ao escrever para o filho e preencher a necessidade de escrita e de elaboração de suas dificuldades.

Há outras obras de Joel de leitura recomendada, marcadas pela presença de traços da cultura popular, como O jacaré que comeu a noite, com ilustração de Eduardo Albini (2007), e Histórias de bichos, com ilustração de Cláudio Martins (2010). Ambas da José Olympio, trazem relatos cheios de humor e irreverência.

E uma obra de caráter informativo, não ficcional, bem recomendada aos jovens e também aos adultos, é Na rota dos tubarões: o tráfico negreiro e outras viagens, com ilustração de Rafael Fonseca (2008), da Pallas. Nesse livro, o leitor vai percorrer a viagem de um navio negreiro. Em uma narrativa reflexiva, bem-humorada e inventiva, Joel nos conduz pela história dos negros no nosso país e nos inclui como fazedores da nossa história, ao repensar o impacto do colonialismo sobre as sociedades africanas, as colônias americanas e os países europeus. Referências bibliográficas no final podem ampliar os estudos e as leituras sobre a África, o negro brasileiro e o tráfico negreiro.

Depois do passeio pela obra de Joel, confirmamos a grandeza de seus textos e a coerência desse intelectual e professor que tem dedicado seus esforços à causa de muitos excluídos.

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