Artigo

Escravo passivo é lenda

por Joel Rufino dos Santos

SUICÍDIO EM PORTO ALEGRE

Deu no jornal gaúcho Echo do Sul em 19.2.1862

Suicídio. Na segunda-feira suicidou-se asphixiando-se no poço da cas a uma escrava do Sr. José Vicente-Thibaut, diretor do colégio S. Pedro. O motivo do suicídio foi o fato dela achar-se inteiramente corroída de doenças ocultas. O Sr. Thibaut havia comprado essa escrava há pouco mais de quinze dias n\'um leilão onde lhe havia sido afiançado qu\'era sã e jamais tinha sofrido senão d\'um panarício [inflamação em torno da unha]. Muito embora esse desengano fosse muito cruel tratou elle de sua escrava com todo o desvelo... A preta fora escrava do Sr. Dr. Menezes que a mandou vender em leilão com a declaração que não sofria senão d\'um panarício; a própria escrava declarou que seu ex-senhor a obrigava com ameaças de sova, se não fosse vendida, a declarar no leilão que não era doente.

São inumeráveis as formas de resistência dos negros, tanto sob a escravidão quanto hoje. Rebeliões mudas. Furto, sabotagem do trabalho, assassinato de feitor, crime passional, mau-olhado, intriga, aborto, infanticídio, preguiça, banzo, suicídio. Rresistência por dentro do sistema, como a dessa "preta do Dr. Menezes", corroída de doenças ocultas. Ela resolveu o seu problema num poço: deixou de ser objeto. E legou um problema para cada amo: para o Sr. Thibaut, dono de colégio, prejuízo; para o Dr. Menezes, fama de vendedor desonesto.

Onde houvesse escravidão - das charqueadas gaúchas à selva amazônica - o trabalhador resistia. O gasto dos senhores e do Estado com segurança acabou ultrapassando o lucro médio do sistema. A classe dos proprietários de escravos (proprietária de terras, exportadora de commodities) se dividiu: os mais avançados dispostos a se livrar da escravidão; os mais atrasados, aferrados a ela. Caíram juntas a escravidão e a monarquia.

PERNAS PRA QUE TE QUERO

Os plantadores de café do vale do Paraíba sabiam muito bem que não se deve plantar em fileira nos morros: a água da chuva, escorrendo livre, acaba com o solo. Mas plantavam: podiam assim cortar o titi, a soneca, o "corpo mole" atrás dos cafeeiros. Salve-se a produtividade, dane-se o solo. O café deixou, nessa região, solos imprestáveis, fazendeiros amargurados, cidades mortas.

Custava muito impedir o negro de fugir, sem falar na perda do investimento. Sabendo disso, alguns iam e voltavam, negociando mais comida, menos castigo, não ser vendido sem mulher e filhos etc. Outros sumiam para sempre na confusão urbana, só difícil para os africanos com marcas tribais na cara. Ou nas brenhas distantes, origem das terras de pretos, remanescentes de quilombos que a produzia, comerciava, se autogovernava, fazia a guerra. No final da escravidão, sitiaram as capitais escravistas. O do Jabaquara, por exemplo, 10 mil moradores. O Exército tirou o corpo fora em 1887. A escravidão acabou. Mérito dos que se jogaram em poços, morreram quando era pra viver, conversaram quando era pra trabalhar, deram às de vila diogo.

QUATRO TIRADENTES

Um dia de 1798, Salvador amanheceu coberta de panfletos audaciosos:

"Está para chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais."

Homens de bem temiam a repetição aqui da Revolução Haitiana (1791), o poder negro. A polícia suspeitava da loja maçônica Cavaleiros da Luz, que escondia francesistas (adeptos da Revolução Francesa). Prendendo e torturando, chegou ao núcleo revolucionário, pretos artesãos. Levado ao juiz, um respondeu que sendo ele o governador repartiria as fortunas entre os que não tinham nada, por essa idéia dava a vida. No final, somente quatro negros foram enforcados e esquartejados, a começar pelo que, escandalizando o tribunal, se imaginou governador.

Escravo passivo é lenda brasileira. Ou ele lutava ou se acomodava, o que também exigia esforço. Negros rebeldes cujo nome a história guardou foram, em geral, trabalhadores autônomos urbanos com certa liberdade de movimentos. Como os quatro da Bahia: Luis Gonzaga das Virgens, soldado, 30 anos; Lucas Dantas, soldado, 24 anos; João de Deus do Nascimento, alfaiate, 8 filhos; Manuel Faustino dos Santos Lira, aprendiz de alfaiate, 17 anos.

A JAMAICA É AQUI

Lá por 1970 marinheiros e estivadores jamaicanos trouxeram para a Baixada Maranhense um ritmo novo. Calipso, carimbó, merengue vinham da mesma mãe África. Criticado pela direita e a esquerda, o reggae jamaicano ganhou jovens negros de bairros e palafitas de São Luís. Reggae nights precisavam de pouco: um sound system (radiola) nas alturas, uma boina de tricô, tranças e o que pintar.

Os mais velhos haviam trazido o Boi do interior. O Boi é popular, o rggae é popular eletrônico, falado na língua global, sotaque Bob Marley, Peter Tosh. Boi e reggae criaram territórios comunitários.

Quando o futebol desembarcou no Brasil, há cem anos, o escritor Lima Barreto fundou uma liga contra ele. Seus argumentos: era importado por ricaços ingleses, desenvolvia os músculos, ao invés do cérebro, distraía os operários da luta política, aumentava a discriminação dos negros. Não podia imaginar o futuro.

Menino, Barreto via passar de fardão, espada arrastando, um negro imponente. Quem é?

"Príncipe Obá II. Mais um maluco baiano."

Cândido da Fonseca Galvão, veterano da guerra contra o Paraguai, vereador sem mandato, escrevia em jornais, não perdia beija-mão (audiência com o imperador). Lutou pela abolição, mas, como tantos negros do seu tempo, preferia a monarquia.

Nem sempre a identidade-resistência do negro é de raiz africana. Identidade é como caleidoscópio: o girar do tempo faz novos desenhos do desenho inicial.

ORGANIZAÇÃO

O negro brasileiro é antes de tudo um organizador. Organizou sociedades secretas, como a Gueledés  (feminina) e a Ogboni (mista, mas dirigida por mulher); e públicas: caixas de alforria, fundos de socorro mútuo, montepios, clubes de lazer, esportivos, sindicatos, imprensa, irmandades, confrarias, escolas de samba, folguedos de rua, blocos afros, trios elétricos, reggeae nights, bailes de charme, pagodes de fundo de quintal, centros de macumba, igrejas, cultos, virações... A mais antiga, Sociedade Protetora dosDesvalidos, fundada em 1833 por libertos, no Pelourinho, Salvador, segue em atividade. As confrarias inundaram o país, a partir de Minas. Começavam com grupos de negros católicos rendendo graças a Deus pela alforria que lhes deixavam, em testamento, senhores bons, ou comprada de senhores piores; depois, cada alforriado liberto contribuía em dinheiro para a caixa da confraria que arrematava, a cada ano, a liberdade de um novo lote de trabalhadores.

E a imprensa negra, com mais de um século? Desde O Homem de Cor, de Paula Brito (1833), até os contemporâneos Black People, Raça Brasil e Maioria Falante, um capítulo à parte.

A LIÇÃO DE BOB

Em 1965, Bob Kenedy, irmão do presidente dos Estados Unidos, visitou a PUC, Pontifícia Universidade Católica, do Rio. Um grupo de estudantes o encostou na parede: "Como explica o racismo de seu país?"

Bob saiu-se bem, perguntou para a moçada:

"Não vejo nesta reunião um negro sequer."

Bob foi assassinado três anos depois. A PUC de São Paulo levou trinta para ter os primeiros alunos negros, 200 bolsistas indicados pelo movimento negro.

Que é movimento negro? Um capítulo centenário da luta pela democracia no Brasil. A contar da Frente Negra brasileira, que teve milhares de militantes e simpatizantes, faz 77 anos. Em 1986 apareceu o curso pré-vestibular da Associação dos Funcionários da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ; em 1992 a Cooperativa Steve Biko em Salvador e o Mangueira Vestibulares. O Núcleo Pré-Vestibular para Negros e Carentes, na Baixada Fluminense, hoje um movimento social de educação popular, se reproduz como cogumeno no país da democracia racial.

Sem negros na universidade não podíamos dar lição a Bob Kenedy.

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