Artigo

História e política no Brasil - a experiência do ISEB

Publicação original: 2005por Joel Rufino dos Santos

História Nova: Conteúdo histórico do último ISEB

 

No ISEB

 

Em meados de 1963, o ISEB ofereceu aos metalúrgicos, na sede de seu sindicato em Mangueira, Rua Ana Néri, um curso de História do Brasil. O endereço é conhecido de quem estudou o golpe militar de 64. Ali ocorreria, pouco depois, a rebelião de marinheiros e fuzileiros navais que deu início à reação em cadeia encerrada com a deposição de Goulart.

 

 

O professor Werneck Sodré (ele preferia não ser chamado de general) abriu e fechou o curso (seis aulas-conferências), deixando as aulas intermediárias para seus jovens assistentes. O auditório, onde pouco depois Anselmo e seus colegas se amotinaram, despejava operários pelo ladrão. Coube a mim apresentar o início e o sentido da Colonização. Na parte das perguntas, recebi as mais insólitas de minha carreira de professor. Um operário mantinha a mão levantada. Já tentara fazer a sua pergunta, mas os colegas não o deixavam completar, achando-a indigna de um trabalhador politizado. Convenci-os de que, exatamente por isso, qualquer pergunta era boa. "Os portugueses já encontraram gente aqui. Eram os índios, certo? Eu quero saber de onde vieram os índios". Apresentei as duas ou três hipóteses principais, mas ele insistiu: "Não quero teorias. Minha pergunta é objetiva: de onde vieram os índios?". Calmamente, respondi: "Não sei". Por um instante a sala ficou suspensa no ar. Temi o pior, um professor de 22 anos confessando ignorância no seu assunto. De súbito, estrugiram em aplauso.

 

Narro este pequeno episódio - na abertura das reflexões que vou fazer - porque ele informa sobre o que se convencionou chamar, com propriedade ou não, o último ISEB. Aquele era o clima, aqueles eram os cenários, aqueles éramos nós, os jovens isebianos, aquela era a nossa ação.

 

O conteúdo do último ISEB foi a sua interação com o movimento de massas, o que foi percebido prontamente pelas forças golpistas. Essa interação se deu por diversos meios; o curso para os metalúrgicos e a História Nova sendo apenas exemplos. Tocávamos em dois pontos nevrálgicos da luta de classes: a organização dos trabalhadores e o conhecimento histórico.

 

Ingressei no ISEB, em 1963, como assistente da cadeira de História Social do Brasil, a convite de seu titular, o historiador Nelson Werneck Sodré. Qual era o meu currículo? Estudante de História da Faculdade Nacional de Filosofia, havia publicado uns poucos artigos na revista do Centro de Estudos, o Boletim de História1. Editada por alunos, única na Universidade do Brasil (hoje UFRJ), foi a pioneira de nossas revistas acadêmicas. Sodré a conhecia e convidou para trabalhar com ele, primeiro, seus dois diretores, recém-formados2, depois a mim e Maurício Martins. Eu não me considerava "bom aluno", embora estudasse História do Brasil com afinco - e esse contra-senso era, aliás, um traço da época. O titular daquela disciplina, Hélio Viana, era um modelo de catedrático da velha universidade: reacionário, monarquista, sinceramente convencido de que História não passa de exaltação dos grandes homens e de seus feitos3. Havia, porém, no meu pequeno currículo um fato "notável": eu era membro da base universitária do Partido Comunista.

 

O convite para assistente de Werneck Sodré foi prontamente aceito por mim, mas teve de ser referendado pela base do Partido. Era um posto de prestígio pessoal, mas, sobretudo, de importância política e eu deveria ocupá-lo como quadro intelectual. Nunca,que me lembre, fui cobrado por qualquer instância do partido, mas o compromisso era inelutável. (Na ocasião, hostil dos companheiros da "linha chinesa" a aliás, antecipava uma luta interna que se aprofundou depois). No Instituto, além de me obrigar a leituras sistemáticas, de formação, ministrava algumas partes do programa – como, pelo que me lembro, a da primeira expansão territorial e a ascensão e queda da Mauá. O enquadramento teórico era a obra de Werneck Sodré, da Introdução à revolução brasileira (que, aliás, me motivara a estudar História) à Formação histórica do Brasil, espécie de Bíblia; e ade Caio Prado Júnior, História econômica do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo. Outros autores, um Sérgio Buarque, um Celso Furtado, uma Nícia Vilela da Luz (A luta pela industrialização no Brasil), desde que "enquadrados" por Sodré e Caio.

 

Minha posição era, pois, de quadro intelectual saído deum partido político de luta. Minha fé de oficio não era exclusivamente intelectual (nem acadêmica, para o ISEB isto não era determinante, embora contasse), mas partidária. O que levou, ademais da militância, um conhecido e renomado historiador a me confiar aquele cargo?4 Provavelmente, uma combinação de fatores: a necessidade de escapar ao isolamento político e institucional a que o Instituto, sob fogo cerrado da imprensa golpista, fora levado pela "radicalização e sectarização" da sua base de apoio; a falta de recursos, que impedia a contratação de estudiosos mais experientes; e, enfim, a estratégia, quase um impulso irrefreável, comum nessas circunstâncias, de "acelerar na curva”5. Um indicativo desse último estado de ânimo foi episódio (1958) que opôs guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. Sodré, diretor interino do Instituto, posicionou-se, por pressão da UNE, a favor do expurgo do segundo, de quem discordava teoricamente, mas com quem (admitiria depois) estava disposto a continuar trabalhando. Sua autocrítica, nesse episódio, foi de haver tolerado o “sectarismo de esquerda” contra Jaquaribe. O erro não fora, contudo, exclusivamente dele: a esquerda, e não só a intelectual, desde o final dos anos 50, parecia fugir para frente.

Agitação e contra-agitação

O velho Mao, em algum lugar do Livrinho Vermelho, garante ser preferível errar pela esquerda a errar pela direita: o primeiro erro é prontamente revelado pelo transcurso do processo; o segundo se eterniza, travestido de esquerda. Quem foi o responsável pela derrota de 64, o esquerdismo dos agitadores ou o direitismo dos conciliadores? Não há resposta convincente. O sectarismo da agitação daqueles dois ou três últimos anos, porém, arrastando instituições da sociedade civil (diríamos hoje) e órgãos do Estado, como o ISEB6, teve decisivo papel. Há pelo menos quinhentos anos, a contradição principal em nossa civilização tem sido a de capital versus trabalho, o que agrupou os partidários de um e outro em pólos opostos. Ocorre que, entre esses pólos, as posições político-ideológicas variam ao infinito - e nada, nem a aplicação do marxismo, pode garantir que se tem razão na luta política, desde, é claro, que seu objetivo deliberado seja a distribuição da riqueza ou, como a chama o vocabulário comum, a justiça social. As posições intermediárias entre a defesa do capital trabalho, freqüentemente se embaralham, o que permitiu históricas "alianças de classe", como as frentes populares, mas também lutas fratricidas, como as que marcaram as Internacionais, as Tricontinentais etc. Os momentos históricos de agitação, como sabem os que estudam História - a Revolução Inglesa, no século XVII, a Francesa, no fim do XVIII, as duas pós-guerras mundiais e, entre nós, a Revolução de Trinta - devem ser consideradas, pois, por atacado, não no varejo; no varejo, todos tem razão e ninguém a tem. Como se pode ter certeza, para tomar no Brasil de cinqüenta anos atrás estava correta a estratégia de primeiro concluir a nação – este o denominador comum entre isebianos de “esquerda” e de “direita” – para depois implantar o socialismo? Ou, ao contrário, a estratégia de “queimar etapas”?

A frente do ISEB se dividia, basicamente, em uma corrente nacionalista-socialista (majoritária), que incluía o nacional-desenvolvimentista anti-imperialista; e outra nacionalista-liberal (minoritária)7. Esse era o varejo; o atacado é que as lutas anti-sistêmicas que então se empreenderam - e que custaram caro a uns e a outros, indiferentemente - foi excepcional momento de agitação da sociedade brasileira.

 

Eu e meus jovens colegas trouxemos para o Instituto a possibilidade de ações extramuros, como foram, por exemplo, aquele curso no Sindicato dos Metalúrgicos, a publicação em sete dias de um best-seller de história imediata (Quem matou Kennedy, redigido por Sodré sobre uma pesquisa dos assistentes8) e a História Nova do Brasil. Quando leigos nos perguntavam o que era História Nova, poupávamos tempo: É a Reforma de Base no Ensino da História”. Suponho, assim, que a tentativa de concretizar as possibilidades sugeridas por essas ações foi a principal característica do último ISEB

 

A História Nova pertence, pois, à história do ISEB, compreensível apenas como tal.

 

Mas de que conjuntura a ascensão e a queda do ISEB - este sim um fato maior, ainda que não dos principais - são peças? Provavelmente da conjuntura da Guerra Fria, marcada no Brasil, em seqüência, pela deposição de Vargas (1945), sua deposição-suicídio (1954), o 11 de novembro de 1955, a renúncia de Jânio (1961), a instalação da ditadura militar (1964). A Guerra Fria, a seu turno, não passa de um episódio da longa história de lutas sociais anti-sistêmicas - um dos sentidos da história moderna e contemporânea - que prossegue hoje em novas direções, mas com o mesmo sentido".

 

A História Nova já foi analisada de vários ângulos, mas o que lhe dá importância, a meu ver, numa palavra, é ter constituído o conteúdo daquilo que alguns analistas convencionaram chamar último ISEB. Ela integra a agitação (na acepção que lhe dá a ciência política, não o senso comum) que caracterizou o governo Goulart, especialmente após o plebiscito de 1963 e a voga das Reformas de Base10.

 

A gestão Paulo de Tarso no Ministério da Educação e Cultura era jovem - aplicávamos em nós próprios o título de uma peça em cartaz, Vitor, ou as crianças no poder. Havia o PNA (Plano Nacional de Alfabetização), a CASES (Campanha de Assistência ao Estudante), dirigida por Roberto Pontual11 e, às vésperas do golpe, o CPC (Centro Popular de Cultura), os Cadernos do Povo Brasileiro e a História Nova, de sucesso surpreendente naquele março de 1964 12.  Essas ações foram concebidas, coordenadas e lideradas, quase sem exceção, por pessoas de menos de trinta anos. Nelson Rodrigues, o reacionário político que tantas vezes acertou na mosca, afirmava em 62 ou 63: "É pecado não ser jovem no Brasil”. A Revolução Cubana, espectro que rondou a América naquele começo de década, fora feita por 18 jovens, o que, na opinião de Hobsbawm, a situa também no contexto da revolução juvenil do pós-guerra.

 

Fruto daquela agitação, aquelas ações engendraram mais agitação, fazendo nascer figuras típicas como, de um lado, o Leonel Brizola da "Reforma Agrária na lei ou na marra!” e, do outro, o mais feroz dos nossos líderes de direita, o Carlos Lacerda da Tribuna da Imprensa. A agitação popularizou o agitador “petebo-comunista”, detestado pela reação conservadora e caricaturado pelos cronistas – bem informado, ingênuo, entusiasta de novas ideias, otimista, “pau pra toda obra", simplificador e ideologicamente radical. O mesmo dramaturgo popularizaria, ainda, as figuras típicas do “padre de passeata” e da "freira de minissaia”. Para muitos, naqueles dias, valia a sentença que atribuem a Anatole France, quando indagado (1914) por que se sentia atraído pelo socialismo: "Melhor ser atraído que ser arrastado”. Já para muitos dos que se situavam no outro extremo, inimigos de qualquer agitação, vigoraria a “síndrome de Dona Aurora": saiu-lhes pior a emenda que o soneto. (No réveillon de 1965, Zé Kéti lançou uma marchinha: "Marchou com Deus pela democracia/Agora chia, agora chia/Você perdeu a personalidade/Agora fala em liberdade/Ai, ó Seu Oscar, o quê que há, o quê que há?/ Ai, Dona Aurora/ Mas por que é que a senhora chora?").

 

Nunca esquecerei de um episódio durante uma das minhas prisões (1966 ou 67) como co-autor da História Nova. Um jovem tenente me retirara da cela para cortar o cabelo. O barbeiro, senhor idoso, civil, quis saber o porquê de eu estar ali. discípulo do general Werneck Sodré", explicou o tenente. O barbeiro insistiu: "Mas o que tem a ver?\': O oficial pareceu se perturbar: "Querem mudar a História toda: "Mudar como?", insistiu o barbeiro. O tenente, já de mau humor, encerrou a conversa: "Por exemplo: escreveram que Pedro Álvares Cabral era viado".

 

O episódio miúdo, quase uma anedota, revela a contra-agitação. Também do outro lado havia simplificação, ingenuidade e radicalização. A mesma onda parecia arrastar a todos, com significados opostos, naturalmente. A História Nova foi brandida na televisão (a poucos dias do golpe) como prova da comunização do ISEB. Teríamos escrito, num de seus volumes, que Caxias, defensor do imperialismo e do latifúndio, estuprara a própria avó. Na verdade, o mais próximo disso que escrevemos (não do crime sexual, é claro) está na Introdução do volume 7 (Da Independência à República): O Segundo Reinado, em contraposição [às Regências), tem a sua aparente tranqüilidade explicada pela \'sabedoria dos grandes diplomatas’. Sabemos, entretanto, que a lavoura de café, em plena expansão, é que deu condições aos senhores de terras e de escravos para executar uma política de consolidação de seu poder em todas as áreas. As \'pacificações\' de Caxias exemplificam-se, justamente, na consolidação do poder por essa classe?"13, Não há o que lamentar: a agitação faz da verdade gato e sapato.

 

 

 

USP x ISEB

 

A obra de Werneck Sodré - de que a História Nova é, uma derivação didática e juvenil-, ainda que intencionalmente visasse apenas a interpretar o Brasil do ponto de vista das etapas históricas brasileiras (não como apressadamente se disse, aliás, das etapas do desenvolvimento histórico geral, o que seria uma simplificação do materialismo histórico), participou daquela agitação. Não é raro que isto aconteça, é a sorte das idéias. Também no momento histórico seguinte, idéias da sociologia acadêmica apropriadas por organizações da luta armada, ainda que, no geral, seus formuladores - vistos pelos torturadores como “mentores intelectuais do terrorismo" - não participassem dela diretamente.

 

A diferença entre as teses isebianas e as uspianas foi, a certa altura, apresentada por representantes menores destas últimas - que se deslumbravam com os brazilianists na exata medida em que desdenhavam analistas brasileiros do Brasil14 – como sendo de "rigor acadêmico". Ora, rigor acadêmico é uma falácia, um engana-olho15. A diferença real foi entre uma ciência deliberadamente produzida no processo da luta versus outra produzida deliberadamente em gabinetes. Tanto numa como na noutra pode-se produzir conhecimento, naturalmente, mas as marcas de origem - participação ou omissão - as acampanharão até que se extingam; como é próprio, aliás, a todo conhecimento. O ISEB diferente da USP, foi desde o começo mais propriamente uma usina de idéias do que uma "fábrica de ideologias", convertendo tipos de energia mais do que as produzindo. Um exemplo, entre outros, foi a "conversão" por Paulo Freire do existencialismo e dos conceitos de alienação, cultura, povo, saber popular etc. em método de alfabetização, como mostrou, entre outros, Vanilda Paiva".

 

As obras de um Guerreiro Ramos, de um Vieira Pinto, de um José Américo Peçanha, de um Wanderley Cardoso, de um Ignácio Rangel, de um Hélio Jaguaribe e de um Celso Furtado (Furtado não era do quadro, mas teve dois livros publicados pelo ISEB) tinham evidentemente qualidade científica. A tentativa de desqualificá-las - como acabou por perceber, ao seu tempo, a última geração de estudiosos paulistas17 - é que nada teve de científica. No caso de Werneck Sodré, aquela tentativa chegou ao seqüestro bibliográfico - seqüestro espetacular, porque se tratava de obra ampla e variada, construída sobre pesquisas exaustivas e originais. Não há mal que sempre dure: alguns seqüestradores (todos, aliás, do segundo time acadêmico) foram punidos com o esquecimento. A supressão da coisa, lembrou Heidegger, só suprime o supressor.

 

De todo jeito, a questão parece estar no embate ideológico entre o discurso prático (não da prática vulgar, mas da política) dos isebianos, da primeira à última fase do Instituto, e o discurso sociométrico (uma derivação do velho empirismo), que pontificou nas escolas paulistas de ciência social a partir dos anos 50, trazendo consigo a conversa fiada da neutralidade científica. A primeira posição ancorava no contexto histórico fluminense: simpatia com o Vargas trabalhista, nacionalismo, agitação sindical, reformismo etc.; a segunda, no paulista: repúdio à herança varguista, desconfiança do nacionalismo e conservadorismo social18, (A posiçãopaulista fora preparada, nos anos 50, pela revista Anhembi Paulo Duarte, "socialista democrático" que via em Vargas o pior dos males).

 

Nesse embate, houve mesmo provincianismo do tipo "Caruaru x Recife", estimulado por marqueteiros intelectuais, distantes do espírito universitário; mas no fundo, tratava-se de uma disputa pela hegemonia no campo da esquerda intelectual. A crítica ao conteúdo principal do ISEB (prioridade estratégica do nacional), quando séria, se fez do ângulo da prioridade da luta de classes. Este o x da questão. A crítica seria perfeita se a luta de classes no Brasil fosse a que os críticos – tanto os qualificados quanto os seqüestradores - pensavam. É certo que a categoria de nação de Álvaro Vieira Pinto recalcava as diferenças de classe, acabando por propor uma ideologia unificadora de capital e trabalho; no entanto, a questão é que as diferenças de classe recalcadas parecem não ser as que seus críticos apontavam. Por outras palavras, se não se situassem exclusivamente do lugar da USP - mas era impossível-, não teriam produzido aquela crítica e, suponho, teriam compreendido de outra forma, talvez mais profunda, o funcionamento da sociedade brasileira. Teriam (como Octavio lanni) percebido que o calcanhar-de-aquiles do nacional-desenvolvimentismo era o pressuposto de uma nação singela, quase exclusivamente território-economia, caminhando inexoravelmente para a sua conclusão. Nesse ponto, aliás, o marxismo de Sodré o pôs a salvo dessa idealização de seus colegas de instituição.

 

Alguns aspectos daquela "competição" só se tornaram claros na atualidade, como, por exemplo, a relação professor-aluno. No último ISEB, particularmente na cadeira regida por Sodré, praticava-se a produção coletiva de ideias – professores, assistentes e muito as vezes, alunos discutiam programas de curso e de pesquisas, seus conteúdos e bibliografias. Eram práticas inimagináveis, até havia pouco, em outras escolas do país, como, aliás, na própria universidade do Brasil, de onde provinha a maioria dos isebianos jovens19. Esse democratismo acadêmico foi também sinal da agitação daqueles anos. Uma História Nova ou mesmo os Cadernos do Povo Brasileiro seriam impensáveis na USP, o que provavelmente contribuiu para a “má imagem” que tinha que por lá o instituto carioca, aliás, um dos primeiro no Brasil, senão o primeiro a trabalhar em nível de pós-graduação (vinculada diretamente ao ministério de Educação e Cultura).

O dia seguinte

Onde se vê melhor, no entanto, aquela competição teórica é na análise política do fenômeno populismo, na verdade um problema mais de luta política do que de sociologia. O populismo - constante de medidas concretas de governo, de uma ideologia, de uma estratégia de desenvolvimento econômico e social, de uma linguagem e de uma cultura - afirmou-se entre o final do Estado Novo e o golpe de 64, embora seus antecedentes venham pelo menos da Revolução de 30. Há consenso de que foi, sumariamente, a forma política assumida por nossa sociedade de massas, legitimando a sua entrada nas estruturas de poder e funcionando como mecanismo de sua politização. Movimento que permeou diversos partidos, governos e lideranças, teria apresentado em cerca de vinte anos quatro modalidades principais (Octavio Ianni): queremismo getulista (concentração de energia em torno do chefe pai-patrão, mais ou menos de 1945-50); trabalhismo (distribuição de renda pelo Estado a corporações de trabalhadores, 1950-54); juscelinismo (combinação da democracia populista com internacionalização da economia, 1955-60); janguismo (populismo reformista de esquerda, 1961-64).

 

Até aí, com poucas discrepâncias, vai o consenso. O que veio depois e, mais importante, como dar prosseguimento hoje às conquistas da democracia populista é o pomo da discórdia. Suponho que nos anos 70 emergiram dois conjuntos de interpretação histórica e, portanto, de estratégias no seio da esquerda. Embora não sejam antagônicos, eles disputam ainda hoje a hegemonia no campo progressista (como dizíamos em 1963).

1) Para os intérpretes situados no interior da ordem moderna (inclusive no lugar da classe operária), o populismo nada mais foi que uma etapa na história das relações entre as classes sociais no Brasil. O fim do populismo (com golpe de 64) terá sido o começo da luta de classes explícita. Essa etapa (em que nos encontramos) chegará também um dia aos seus limites,quando o aguçamento das suas contradições instalará a democracia socialista, potencialmente anunciada por alguns elementos das etapas precedentes (o intervencionismo estatal, os esboços de planificação econômica, a política de massas, certos valores culturais etc.)20.

 

Esta avaliação, com poucas exceções, serviu de teoria à geração guerrilheira que se defrontou com a ditadura militar. E constituiu com poucas exceções,  ção guerrilheira que se defrontou com constitui, com pouco mais de sofisticação (às vezes menos), por exemplo, o "socialismo eclesial" e social-democracia, balizamentos ideológicos do Partido dos Trabalhadores (PT). No plano nacional, sumariamente, a AP gerou a ação armada e depois o PT; no Rio, desprovido de base sindical combativa, debilitada pelo peleguismo, o último ISEB gerou ação armada e depois um PT fragilizado;

 

 

2) A segunda maneira de ver, oposta a essa, começa concordando que a democracia populista foi uma etapa vencida do desenvolvimento social do país, mas não da história da luta de classes que, no seu limite, conduziria à democracia socialista. Ao golpe de 64 não se seguiu, salvo no plano do desejo, uma etapa da clássica luta de classes. Em certos limites, ela não deixou de ocorrer, era mesmo previsível naquele momento histórico, mas nem por isso o socialismo deixava de ser uma teleologia. Generosa teleologia, mas teleologia. Desse ponto de vista, o que efetivamente aconteceu no Brasil teria sido o aprofundamento de uma contradição entre ordens: classificados (nas ordens moderna e oligárquica) versus desclassificados (ordem do povo).

 

Esta segunda avaliação serviu de balizamento teórico ao que se convencionou chamar, com a redemocratização, de brizolismo, Amálgama de florianismo, positivismo, fabianismo (a origem "teórica" de Vargas), rousseaunismo, castilhismo, tenentismo, trabalhismo, nacional-desenvolvimentismo etc., é o que os teóricos do primeiro grupo decidiram chamar de neopopulismo (ou simplesmente populismo). Populismo, um conceito útil à ciência social, ao ingressar na luta política nada mais é do que uma arma dessa luta - e como tal foi utilizado exemplarmente por brazilianists instalados na Universidade, durante a ditadura, e seus admiradores brasileiros, como mostrou, entre outros, Paula Beiguelman: "Para o brazilianista, prometer maior participação na prosperidade econômica e uma política econômica mais nacionalista é pejorativamente chamado de populismo21. O que provavelmente se vê melhor hoje é que havia uma base material para o populismo, tanto o realmente existente quanto o seu fantasma: a ordem dos desclassificados. A hipótese reatualiza o debate, que parecia superado, sobre as formas de estratificação no Brasil.

 

 

Visto à distância de quase meio século, percebe-se que nenhuma instituição, nem mesmo o antigo PTB, nenhum pensador político, mesmo um Alberto Pasqualini ou o Guerreiro Ramos de O problema nacional do Brasil - que tinham explicitamente essa pretensão -, contribuiu tanto quanto o alto ISEB (1957-63) para a elaboração de uma teoria de Brasil que incorporasse os desclassificados. Eles se mantêm como Esfinge há mais de meio século; o populismo é a sua hipótese. O baixo ISEB, ou último ISEB, como se queira, parece por isso mesmo mais fácil de situar e compreender: juvenil, agitador, radical.

 

 

Um baiano atormentado, mal-vestido, insólito, freqüentou o ISEB nos seus últimos meses. Eu o evitava, pois tinha a péssima mania de meter o dedo no nariz e depois passá-lo nos interlocutores. Um dia, produziu um manifesto sobre a "Estética da Fome", conversão da violência da exploração em violência simbólica, cinematográfica: da realidade à metáfora. Se tivesse de escolher um emblema do último ISEB, escolheria o "mal-educado" Glauber Rocha. Ele simbolizou a passagem, sem ruptura, do alto ISEB para o baixo (último). Era nacionalista, antiimperialista, desenvolvimentista-socialista e só não pode ser tomado como mentor da luta armada pós-68 porque postulava a violência dos desclassificados, não a da "classe trabalhadora22.

 

 

 

 

10Boletim trazia sempre uma epígrafe na capa. O número 7, de agosto de 1963, foi tirado de O problema econômico no Brasil, de Serzedello Corrêa, que "descobríramos". É revelador: "Ninguém se iluda: companhia alguma estrangeira dessa ordem [1903] nos traz capital e nada acrescenta ao trabalho e à riqueza brasileira. Ao contrário, são bombas fortes de sucção de toda a economia pátria, onde ela exista, para transferi-la para o exterior”.

 

2Pedro Celso Uchoa Cavalcanti Neto e Pedro de Alcântara Figueira.

 

3 Hélio da Rocha Viana tinha, no entanto, como assistente Maurício Medeiros de Albuquerque, "convertido" ao marxismo depois do golpe militar.

 

4 A mim e aos meus três jovens colegas da FNFi.

 

5 A "crise do ISEB", que vinha de antes, radicaliza-se em 1960 com a presidência Jânio Quadros e a saída de Hélio Jaguaribe e outros. Ver Nelson Werneck Sodré, da História Nova. Petrópolis: Vozes, 1987.


6Outra maneira de ver é o ISEB como inaugurador de nossa sociedade civil: "Maria Sílvia Carvalho Franco captou bem este aspecto do pensamento isebiano quando dizia que seus intelectuais eram fundadores da sociedade civil brasileira. A ausência de um \'povo\' caracteriza o passado brasileiro, no momento em que os intelectuais do ISEB escrevem, afirma-se a existência de uma sociedade civil que não possui ainda a devida expressão política". Renato Ortiz, Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 63-64.

7Àquela altura, a fração pró-imperialista e liberal (Roberto Campos e outros) fora alijada do Instituto.

 

8Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Ed. Gernasa, 1963.

 

9"Entre as múltiplas expressões locais da revolução mundial de 1968, tivemos, é claro, uma rebelião contra a civilização capitalista e suas estruturas de sustentação mais imediatas, a hegemonia dos Estados Unidos no sistema-mundo, com os quais, acreditava-se, a União Soviética atuava em conluio. Mas também tivemos uma rejeição de todos os velhos movimentos anti-sistêmicos-socialdemocratas no Ocidente, partidos comunistas no antigo bloco socialista, movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo - que passaram a ser vistos como fracassados e, ainda pior, como agentes de legitimação do sistema-mundo existente". lmmanuel Wallerstein, Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, p. 136.

 

10De Werneck Sodré: "Quem estuda História sabe que esses períodos de \'agitação\' são fecundos. Os períodos de características opostas, os períodos de \'ordem\', são definidos exatamente pelo conformismo, pela placidez, pela \'ordem\'; tudo está estabelecido e consagrado, não há debates, não há polêmicas. Tudo está nos conformes, isto é, todos parecem conformados com o estabelecido. Foi nesse pântano que estagnou a cultura brasileira, com a ditadura inaugurada em 1 de abril de 1964 e aperfeiçoada em dezembro de 1968". Joel Rufino Santos et alii. História Nova do Brasil (1963-1993). São Paulo: Loyola/Giordano, 1993, pp. 29-30.

 

11Roberto Pontual, após o golpe, fez carreira de editor na civilização Brasileira. Morreu cedo.

 

12A CASES distribuiu cinco mil exemplares gratuitos para professores do país inteiro. Em poucas semanas, recebemos perto de trezentas cartas de professores (uma delas negativa, de autor de livro didático). Em quase todas as capitais, em compensação, ela mereceu editoriais e artigos contra, o que ajudou a mitificar a obra. Quarenta anos depois, ainda sou apresentado nos locais mais diversos como "um dos autores da História Nova”.

 

13Apud Pedro Celso Uchoa Cavalcanti Neto. In: História Nova do Brasil (1963- 1993). São Paulo: Loyola/Giordano, 1993, pp. 62-63.

 

14No entanto, Sodré foi sempre amistoso com brasilianistas que procuravam. Costumavam entrevistá-lo e, certo dia, um deles (não me lembro quem) lhe pediu números do "subdesenvolvimento brasileiro”: Sodré o levou pelo braço até varanda do casarão oitocentista em que funcionava o ISEB, apontou-lhe a favela do Santa Marta, enorme à frente, e disse com sua melhor voz de oficial-de-dia: "Estão aí. Pode fotografar à vontade”.

 

15 Um desses críticos de Sodré chegou a acusá-lo de não-científico por não usar o critério internacional (leia-se da academia norte-americana) de referência bibliográfica (sic).

16 Vanilda Paiva. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

 

17Ver Marcos Silva. Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira. Bauru: EDUSC, 2001; e Paulo Ribeiro da Cunha. Um olhar à esquerda. A utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

 

18 É também a opinião do francês Daniel Pécaut: "Por ora, queremos somente indicar que as diferenças também se relacionam às experiências políticas anteriores e ao ambiente político: no Rio, a recuperação do getulismo como matriz do nacionalismo e a multiplicação das greves políticas; em São Paulo, a desconfiança em relação ao legado do Estado Novo e a confusão diante das ‘massas’ que servem de suporte a sucessivas vagas populistas" Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990, p. 173.

 

19 E, aliás, também o “velho” Álvaro Vieira Pinto.

 

20 Essa era a tese de Carlos Estevam Martins, jovem assistente de Vieira Pinto no ISEB e diretor do CPC da UNE, em 1963: preciso sacrificar o artístico? Claro que sim, porque as classes populares vão chegar ao poder logo, logo”.  Citado por Daniel Pécaut. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Ática, 1990, p. 159.

 

21E ainda: "Pois o brasilianismo se insere, com certeza, num projeto de desestabilização política [do governo João Goulart) e, em seguida, de controle e acompanhamento da performance da ditadura, que passou a ser chamada eufemisticamente de \'autoritarismo\', assim como os velhos trustes, cartéis e corporações, de multinacionais. [ ... ] Assim, por exemplo, um pesquisador doublé de manager de mineradora e ligado à CIA até por laços familiares dedicava-se a levantar com estranha minúcia a antiga história das esquerdas brasileiras, reabrindo feridas, repisando divergências e querelas, enfatizando aspectos que, embora tivessem ocorrido e devam ser sempre repudiados, não constituem evidentemente a essência do projeto getulista - mas que entretanto, com tal focalização se buscava desqualificar" Alfredo Bosi (org.). Cultura Brasileira, temas e situações. São Paulo: Ática, 1987, pp. 200-201, 203.

 

22Renato Ortiz, ao meu ver ainda o melhor intérprete do ISEB, ao lado de Caio Navarro de Toledo, tem opinião semelhante: "Nada mais distante do pensamento do ISEB do que uma reflexão sobre a violência ou a revolução. Somente Glauber Rocha recuperou no Brasil uma discussão do tema proposto por Fanon [Frantz Fanon propunha a violência revolucionária anticolonial]. Op. Cit., p. 62.

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