Artigo

Memória - Revista África 21 N°101

Publicação original: 2015por Zetho Cunha Gonçalves

Meu caro Joel,
A verdade é que pouco ou nada nos conversámos quando nos conhecemos no Rio de Janeiro, em 2011. Foi no Salão FNLIJ. Porém, algo já sabia de si, da sua obra, da sua pessoalíssima história de ativista cívico e do seu incansável empenhamento e dádiva − sempre postos em estado de inquietude inquiridora e dialogante − na construção de uma cidadania culta e de leitores irrequietos e livres, fazedores por si mesmos dos seus mais encantados reinos de prazer literário e subsequente sageza acrescida, em demanda de uma sociedade justa, pluralmente viva, onde a voz de cada um seja uma voz própria e jamais hegemonizada pelo tom em crescendo da barbárie perpetrada contra os mais elementares direitos e deveres do ser humano − cada vez menos ser e como que obnubilado da mais sagrada e inalienável condição: responder apenas pelo humano que somos, como marca indelével sobre as velhas pedras do mundo. Você, meu caro Joel, pautou-se como um ser múltiplo e miraculado pelas suas convicções, desde a formação académica em História (para melhor chegar aos fundamentos das causas por que sempre pugnou, da liberdade e da justiça, da alegria e da felicidade coletivas, da suprema dignidade para esta raça humana, que o vai sendo cada vez menos), ao exílio e à prisão pela ditadura, para se tornar o escritor amado, respeitado, reconhecido e premiado, para a infância e juventude de todas as idades, ou ser o pesquisador cultural das raízes orais e fundadoras do Brasil e um dos re-escritores da sua Nova História, humanista e pedagogo impenitente, professor universitário insigne − que haveria de fundar o Memorial Zumbi na serra da Barriga, ser presidente da Fundação Palmares, coordenador do Projeto Rota dos Escravos, da Unesco, Subsecretário de Defesa e Promoção das Populações Negras, Subsecretário de Direitos Humanos, Diretor de Comunicação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde idealizou eventos pioneiros como o desenforcamento de Tiradentes e o Baile Charme de Madureira. O preço a pagar pela Liberdade sempre foi inumanamente alto e excessivo, sistematicamente vilipendiado, exigindo uma permanente aposta da própria vida. E você jamais hesitou: sabia como eram nobres e valiosíssimos os juros colhidos dessa luta pelos bens mais vulneráveis, porém os mais perenes da vida digna, libertária, exsudada da hipocrisia, do dogmatismo e da traição. Na sua terceira prisão (1972-1974), você, que exilado, não assistiu ao nascimento de seu filho Nelson, agora em idade escolar, desatou a escrever-lhe cartas como fábulas que explicassem como o pai negro não era um bandido mas alguém cuja maneira de pensar «o governo não gostava». Nessas cartas escritas à mão, a variadas cores e mimadas com desenhos, você empenhou-se em falar de política, justiça, e da História do Brasil ao seu filho. Valioso e raro documento humano sobre a História do país, para além da profunda comoção que provoca no leitor aquele amor de pai pelo seu distante e amado filho. Graças à companheira de sempre, a sua bem-amada Teresa Garbayo, essas cartas deram, em 2000, um livro: Quando eu Voltei, Tive uma Surpresa. Para quem «o primeiro recurso pedagógico deve ser sempre o da sedução» e a literatura «um prazer que pode ser estimulado, e não prescrito», tal como a «Cultura é a habilidade exclusivamente humana de estranhar o mundo», o que nos fica de Joel é maior que Joel: é a sua dadivosa devolução à dignidade sem preço de cada um de nós do nosso próprio rosto − íntegro, rejubilante, solidário.

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