Artigo

Memorial Zumbi - Conquista do movimento negro

Publicação original: 2008por Joel Rufino dos Santos

Memorial Zumbi - Conquista do movimento negro*

 

Neste depoimento, pretendemos esboçar um pequeno apanhado da história do Memorial Zumbi como conquista do movimento negro organizado no Brasil. E a história é longa; a esta altura dos acontecimentos, já tem nove anos. Tudo começou em 1980, quando a Universidade Federal de Alagoas decidiu convidar um grupo de intelectuais e militantes da causa negra para discutir a formação de um Parque Nacional Zumbi dos Palmares, no local histórico em que existiu até 1695 a capital do Estado Negro de Palmares. Esse grupo de intelectuais e militantes negros, lá chegando, discutiu o projeto da Universidade e o reverteu e virou de cabeça para baixo. O projeto original tinha um caráter predominantemente turístico e, a partir dessa reunião, dessa crítica feita pelos intelectuais e militantes negros, passou a ter um caráter prioritariamente político-ideológico. De fato, Palmares foi o episódio mais importante da nossa história social. Seguramente não há na história da América um núcleo rebelde que tenha resistido por tanto tempo. Palmares durou aproximadamente um século dos quinhentos anos de vida que tem o Brasil. Foi mais do que um núcleo rebelde, constituindo-se durante esse longo tempo num verdadeiro Estado alternativo ao Estado metropolitano colonial. Mais do que um Estado, Palmares representou também, durante esses quase cem anos de existência, uma nova sociedade e o embrião de uma civilização original, misto de contribuições africanas, indígenas e até mesmo européias, sobretudo dos oprimidos, dos discriminados pela sociedade colonial escravista.

 

Lá chegando, aqueles intelectuais negros militantes, levando em conta a importância histórica inigualável de Palmares, reverteram o projeto da Universidade. A partir daí, pensou-se em erguer, na Serra da Barriga, capital do Estado de Palmares, um conjunto monumental que fosse ao mesmo tempo um ponto de encontro dos movimentos negros democráticos, um centro de pesquisa e um museu da contribuição do negro à formação social, política, econômica e civilizatória do Brasil.

 

 

De 1981 até 1990, sucederam-se algumas diretorias no Memorial Zumbi. Esses diretores eram intelectuais e militantes do movimento negro de todas as partes do país. O Memorial Zumbi fica sendo assim, portanto, uma das poucas instituições brasileiras de caráter efetivamente nacional. Na diretoria do Memorial Zumbi, juntaram-se pessoas do extremo Sul do país (Rio Grande do Sul); do extremo Norte (Amazonas, Pará, Maranhão); do Nordeste e, aliás, sobretudo do Nordeste; do Centro-Oeste e Sudeste (Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo). Enfim, pela primeira vez estávamos diante de uma instituição de movimento afro-brasileiro nacional. Além disso, durante esses nove anos de existência, foram atraídos políticos, intelectuais e militantes de causas democráticas no Brasil, particularmente aqueles que tinham sofrido na ditadura militar e buscavam um novo horizonte, uma nova perspectiva em que se engajar, já que os partidos políticos em 1980 e 1981 atravessavam mais um momento dessa crise prolongada que caracteriza o jogo político-partidário brasileiro. Com esse segmento e com outros aliados de diversos movimentos sociais, tais como o movimento de mulheres e o movimento das nações indígenas, foi que o Memorial Zumbi cresceu, tanto na sua estruturação interna quanto em seu prestígio social, brasileiro e internacional.

Verificamos, por um lado, a realização de vários objetivos e, por outro, uma impossibilidade e uma impotência na realização de alguns outros. Contudo, o objetivo mais importante alcançado foi consagrar a Serra da Barriga como um local anual de peregrinação. Quando o Memorial Zumbi estruturou-se, em 1981, poucos de nós acreditávamos que a Serra da Barriga fosse ocupar um espaço tão grande do imaginário brasileiro, um papel tão importante nas preocupações dos movimentos negros e democráticos. Tampouco imaginávamos que a Serra da Barriga fosse se tornar um local de visita, uma referência objetiva para esses movimentos. Mas foi efetivamente o que aconteceu. Em certo sentido, Palmares, a Serra da Barriga, tornou-se a Meca dos movimentos negros e democráticos do Brasil. Ao longo desses nove anos, para lá têm ido instituições, entidades, organizações, lideranças e autoridades das mais variadas, provindas dos mais diversos cantos do país. Levados até por objetivos diferentes, mas basicamente peregrinando, subindo a Serra da Barriga no dia 20 de novembro, lá celebrando a vitória da vida sobre a morte, que em última instância foi o que representou Palmares e seu líder máximo, Zumbi dos Palmares. Essa peregrinação vem crescendo desde 1981. Na primeira vez foi modesta, na segunda aumentou um pouco, na terceira diminuiu relativamente, graças a uma série de circunstâncias específicas daquele momento, mas a partir do quarto ano voltou a crescer, até se tornar uma grande festa que congrega milhares de pessoas, mobilizando bastante energia e bastante dinheiro.

O local histórico de Palmares, a Serra da Barriga, é um sítio impressionante, a começar pelo fato de que sua localização estratégica é excelente. Dali do alto da Serra - que tem oitocentos metros de altitude, em média -, descortinam-se todos os caminhos do Nordeste. Ao norte, veem-se os caminhos que levam a Pernambuco, principal estado nordestino, tanto hoje como no tempo em que Palmares existiu. Descortinam-se os caminhos que levam ao agreste, à caatinga, ao sertão árido, o caminho que leva ao litoral, a Maceió e Portugal. Na direção sul,abrem- se os caminhos que levam à Bahia, ao São Francisco. Não por acaso, os guerrilheiros palmarinos ali construíram sua capital: a localização estratégica era perfeita. Por outro lado, a Serra da Barriga foi, naquele tempo (entre 1597 e 1695), durante a existência de Palmares, uma região fertilíssima. Os depoimentos dos viajantes que por ali passavam, os diários dos militares que combateram Palmares durante todo aquele tempo, são unânimes em afirmar que eram de fato as melhores terras da capitania de Pernambuco. Solo excelente, águas ótimas, clima ameno; enfim, um paraíso. Por sinal, a terrível luta empreendida pelos colonialistas para liquidar Palmares tinha embutida essa intenção de ocupar as terras mais férteis da capitania, que do ponto de vista dos colonialistas estavam absurdamente ocupadas por negros fugidos. É, portanto, uma região maravilhosa. Hoje, passado tanto tempo, essa região está completamente tomada pela cana-de-açúcar. A Serra da Barriga é quase uma ilha cercada de canaviais por todos os lados, os quais já sobem a Serra ameaçando engoli-la completamente.

 

Onde chega a mono cultura da cana, esse inferno do Brasil contemporâneo, temos irremediavelmente a miséria. A região da Serra da Barriga, interior de Alagoas, tornou-se assim uma das mais pobres do Brasil, onde até mesmo o pouco que a população desfrutava antes, no que se refere a habitação, alimentação, qualidade de vida, até mesmo esse pouco diminuiu. Algumas doenças típicas de avitaminose, desconhecidas nessa região vinte ou trinta anos atrás, tais como a xeroftalmia, agora são fato corriqueiro. É, portanto, um quadro de miséria o da região palmarina, que no tempo de Zumbi dos Palmares foi a mais fértil da capitania. Não por acaso a população palmarina, os negros aquilombados em Palmares durante aqueles cem anos, alimentaram-se melhor do que a população colonial em geral. Existem também, numa documentação histórica que possuímos, algumas referências bem precisas em relação a esse fato: a população palmarina alimentava-se bem, era forte, gozava de saúde, tinha um bom exército. A população das fazendas - os pobres coitados, os pobres-diabos, como se dizia, submetidos ao latifúndio, à onocultura, à escravidão - era, pelo contrário, pobre, mal alimentada, constituída de péssimos soldados. Dessa forma, Palmares contrastava violentamente com a sociedade global.

 

Um aspecto interessante a ressaltar é que, dentre as conquistas do Memorial Zumbi, está a revelação de uma ampla documentação sobre Palmares, conquista nada desprezível. Durante os nove anos de existência do Memorial, no pequeno alcance das nossas possibilidades foi possível conhecer uma abundante documentação sobre o Quilombo dos Palmares. A Universidade Federal de Alagoas e o Memorial Zumbi possuem cópias de, aproximadamente, cinco mil documentos manuscritos só sobre Palmares. Essa documentação foi reunida tanto em Pernambuco, Alagoas e Bahia quanto em Portugal e na Espanha - e é interessante esse fato porque ele joga por terra um dos mitos mais arraigados da historiografia brasileira, segundo o qual é impossível conhecer a história dos negros por falta de documentação. Sabemos que a história não se faz exclusivamente com documentos, mas não é verdade que a documentação escrita sobre os negros seja pequena: ela é abundantíssima, particularmente no caso de Palmares. Até aqui são cerca de cinco mil documentos, e tudo indica que uma pesquisa mais cuidadosa, mais sistemática, vá descobrir ainda mais. Essa documentação nos permitiu, por exemplo, reconstituir a vida de Zumbi dos Palmares. Com lacunas, é verdade, pois há fatos e períodos da vida do líder máximo de Palmares que ainda não conhecemos, sobre os quais a documentação é escassa. Entretanto, já foi possível saber como foi sua infância, quais foram os momentos decisivos de sua vida, até sua morte em 1695, em plena luta guerrilheira. É possível, também, por meio dessa documentação, ter uma ideia mais ou menos exata de como funcionava a sociedade palmarina, seu governo, seu exército, de como se produzia a riqueza em Palmares e dos lances decisivos dessa guerra sem quartel contra o colonialismo português.

 

No que se refere às conquistas do Memorial Zumbi, pensamos que, primeiro, a consagração da peregrinação é uma vitória, uma conquista. A revelação da documentação que tanto contribuiu para destruir o mito da impossibilidade de fazer uma história do negro, a segunda vitória. Uma terceira conquista foi um aumento significativo da sensibilização da sociedade brasileira em relação à questão do negro. É verdade que essa sensibilização vem de longe, começando na década de 1930, quando surgem as primeiras organizações de movimento negro contra o racismo. Mas prossegue no pós-guerra, sobretudo em torno da liderança de Abdias Nascimento, e dá o passo seguinte na década de 1970, há vinte anos, quando começam a proliferar em todo o país instituições de movimento negro. O Memorial Zumbi contribui enormemente para tal sensibilização nesses últimos dez anos. Primeiro, porque ao consagrar a peregrinação à Serra da Barriga no dia 20 de novembro o movimento negro virou notícia, promoveu o debate sobre o papel do negro na sociedade brasileira, na formação histórica do país, demonstrando que é impossível contar a história do Brasil, os quatro quintos de seu tempo histórico em que durou a escravidão, sem compreender a gesta de Palmares, a epopéia palmarina. Ou seja, Palmares é a chave para a compreensão da história social brasileira, e foi precisamente o Memorial Zumbi que demonstrou esse fato. Tudo isso aumentou enormemente a sensibilização da sociedade brasileira para a questão do negro. Essa sensibilização também cresceu pela atração de lideranças, intelectuais, historiadores, cientistas sociais e políticos que o Memorial Zumbi promoveu. O Memorial Zumbi atraiu toda essa gente formadora de opinião, conseguindo assim significativo avanço num curto período de tempo, mais nesses dez anos do que durante todo o tempo anterior.

 

Houve também algumas frustrações. Por exemplo, não conseguimos até hoje erguer o conjunto monumental que estava em nossas intenções iniciais após aquela assembléia em Maceió promovida pela Universidade Federal de Alagoas em 1980, quando foi lançada a ideia inicial do Parque Nacional Zumbi dos Palmares. Para explicar esse fracasso concorre a falta crônica de recursos dos movimentos sociais, incluindo a dificuldade de transitar internacionalmente em busca desses recursos. Para começar, existe uma total insensibilidade do nosso serviço diplomático para esse tipo de questão. Então, nas poucas vezes em que tentamos mobilizar recursos externos, esbarramos na má vontade do Itamaraty. Por essas e outras razões, nunca conseguimos erguer o conjunto monumental que pretendíamos. Isso foi agravado pelas dificuldades surgidas no governo Collor. A área da cultura, como se sabe, foi muito penalizada e, como o Memorial Zumbi estava ligado desde o início a uma instituição do governo (a Fundação Pró-Memória, órgão do Ministério da Cultura), viu-se prejudicado na alocação de recursos.

Estes eram fundamentais para a realização de várias atividades, como as reuniões anuais na Serra da Barriga, as reuniões da diretoria e a expedição de correspondência. Tudo isso nos falta agora, e não há perspectiva de melhoria nesse sentido, a não ser que o governo resolva atentar, um pouco para a cultura e considerá-la uma extensão importante de sua política.

 

A diretoria do Memorial Zumbi está constituída da seguinte maneira: primeiro, uma diretoria executiva composta de três membros, presidente e secretário-geral. Essa diretoria executiva é, responsável perante o conselho deliberativo, o qual é formado em parte por representantes, de instituições não governamentais do movimento negro, ou a ele ligados, e complementarmente por representantes de órgãos públicos tais como a prefeitura da União dos Palmares (o município onde está localizada a Serra da Barriga), a Fundação Nacional Pró-Memória, o governo do estado de Alagoas e alguns outros órgão, públicos, como a coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, (Capes). O conselho deliberativo é eleito de quatro em quatro anos, por uma assembléia geral, da qual fazem parte todos os movimentos, organizados, intelectuais e lideranças políticas de algum modo afinadas, com Memorial ou que tenham, em algum momento, reconhecidamente prestado serviço à causa negra. São, portanto, três instâncias: a diretoria executiva, responsável diante do conselho deliberativo, o qual é instalado pela assembléia geral, o qual é instalado pela assembléia geral.

 

A crônica do Memorial Zumbi ainda está por fazer. Temos reunido, durante esses nove anos, alguma documentação sobre episódios, decisivos da história do Memorial. Também está reunida a documentação que dá conta dessas peregrinaçõesanuais que temos feito ao alto da Serra da Barriga. Mas, ainda não se fez uma crônica sistemática desse Memorial Zumbi. Cremos, que seria de enorme importância fazê-la, porque então não somente teríamos a história de uma instituição que funciona na prática como federação de instituições do movimento negro, como também obteríamos, um verdadeiro retrato do que foi a luta organizada contra o racismo em nosso pais nesses últimos dez anos.

 

Os problemas, 0s dilemas, as contradições e as tendências do, movimentos, negros nesses últimos, dez anos, de alguma maneira,foram desembocar no Memorial Zumbi. Apenas para dar um exemplo: temos tido nos movimentos, negros do Brasil uma controvérsia entre Movimentos especificamente políticos que colocam como objetivo explícito o combate ao racismo; e aquelas instituições, entidades, órgãos e personalidades negras que, embora não objetivem claramente a luta organizada contra o racismo, são representativas das comunidades negras. Sua sensibilidade tem, entretanto, nos ajudado a enfrentar esse dilema. São assim dois os grupos, os que se voltam explicitamente contra o racismo e os que não o fazem desse modo. Esses dois grupos serão movimentos negros, igualmente? No seio do Memorial Zumbi, essas duas tendências, esses dois grandes agrupamentos, os anti-racistas (chamemos assim) explícitos e os implícitos, têm confluído e trocado regularmente suas experiências, seus pontos de vista e até mesmo superado alguma hostilidade que porventura pudessem ter. Mas objetivamente ternos tido, no seio do Memorial Zumbi, a colaboração de representantes do movimento negro político, do Movimento Negro Unificado (MNU) e pais-de-santo e ialorixás, representantes da comunidade de terreiros, de clubes recreativos, assistencialistas, que em outro momento, fora do Memorial Zumbi, de modo geral se desconheciam, quando não se hostilizavam. Então o Memorial Zumbi tem sido também um ponto de convergência, uma desembocadura dessas duas grandes tendências dos movimentos negros no Brasil.

 

Pensamos que, portanto, uma crônica sistemática do Memorial Zumbi seria de grande proveito para a compreensão não só das relações raciais no Brasil, em última instância, mas basicamente dos movimentos negros brasileiros. A história dos movimentos negros ainda está por ser feita, havendo algumas tentativas, realizadas por Clóvis Moura, por Abdias Nascimento e por mim mesmo. Mas a história do Memorial Zumbi, que a nosso ver é o capítulo mais importante dessa história dos movimentos negros contemporâneos, ainda está por sistematizar.

 

Um capítulo também interessante da história do Memorial Zumbi é a luta pela desapropriação da Serra da Barriga. A primeira preocupação dos fundadores do Memorial Zumbi, já em 1981, era como impedir a depredação da Serra, sua invasão pelos canaviais, pelos latifundiários plantadores de cana, pelos usineiros. Essa foi nossa primeira preocupação. Desenvolvemos nesse sentido uma luta com o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) - luta difícil porque não havia antecedentes de tombamento de um bem cultural e físico dos negros - e chegamos a um bom resultado. O Patrimônio Histórico considerou a Serra da Barriga patrimônio histórico nacional; e a partir daí começou uma segunda luta, a luta pela desapropriação desse patrimônio e sua entrega ao Memorial Zumbi. Essa luta levou aproximadamente seis anos e culminou com o decreto de desapropriação da Serra e sua entrega à gestão do Memorial Zumbi. Começaria, então, uma terceira luta, que ainda transcorre em 1990 e certamente ainda levará alguns anos até chegar ao final: a luta pela preservação do bem tombado, a luta permanente para impedir a depredação daquele bem histórico, físico, arqueológico, simbólico, ameaçado permanentemente pelo latifúndio açucareiro e também, é óbvio, pelo acólito do latifundiário açucareiro, o bóia-fria, o sem-terra, o trabalhador do canavial.

 

Desde sua primeira fase até a atual, essa é uma luta difícil de travar, porque temos poucos aliados. Contamos exclusivamente com o poder dos movimentos negros e das instituições e personalidades democráticas. Mas enfrentamos a indiferença e a hostilidade das oligarquias nordestinas que, por um lado, temem abrir um precedente, para elas extremamente perigoso, da entrega de parte do patrimônio à gestão de uma entidade da sociedade civil, ainda mais de negros, vistos como esquerdistas, subversivos e assim por diante. Por outro lado, essas oligarquias temem, além da abertura de um precedente de natureza política ideológica, a perda do patrimônio físico, já que está em seus planos a ocupação de todos os pedaços de terra em que porventura possa se plantar cana-de-açúcar. Tais oligarquias têm muito mais do que nós, infinitamente mais do que nós, seus representantes no parlamento, nos governos estaduais, nas prefeituras. Manejam de perto autoridades locais, vereadores, prefeitos, políticos - e obviamente têm o poder de formar a opinião pública, poder mil vezes maior do que o nosso, já que contam sempre com jornais, rádios, televisões. Particularmente no caso do Nordeste, contam com televisões. Enfim, para os movimentos negros a luta é extremamente árdua, porque se trata de enfrentar a oligarquia mais consolidada e sem dúvida a mais retrógrada do país, a oligarquia canavieira do Nordeste.

 

Uma crônica sistemática do Memorial Zumbi não poderia deixar de fora o desdobramento que teve o Memorial sobre a luta das nações indígenas. Essa luta vem crescendo muito nos últimos anos. Tais nações indígenas se organizaram em diversas instituições que, juntas, formam o movimento das nações indígenas. Em 1983 subiu a Serra conosco, na peregrinação anual de 20 de novembro, o líder indígena Aílton Krenak. Na ocasião, estimulado pela visão daquele belo espetáculo que era a exaltação e a festa de Zumbi dos Palmares, começou ele a pensar na possibilidade de resgatar do esquecimento histórico a figura de um herói indígena. Saímos conversando, encontramo-nos algumas vezes depois e decidimos iniciar o resgate de Cunhambebe. Este foi talvez o primeiro grande líder indígena da história da América, antes de Túpac Amaru e contemporâneo de Cuauhtémoc, no México. Ele chefiou uma confederação de tribos tupinambás entre Espírito Santo e São Paulo na luta contra o colonialismo português. Isso em 1555, mal começada a colonização do Brasil. Localizamos uma ilha na baía de Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, onde Cunhambebe teve sua aldeia principal. Conseguimos reunir cerca de quatrocentas lideranças indígenas de todo o país numa peregrinação à ilha de Cunhambebe, deixando lá plantada uma árvore que simbolizava a tomada de posse simbólica daquele território para as nações indígenas atuais. Estavam lá, além dessas lideranças indígenas, muitas pessoas do movimento negro. Muito bem, foi uma semente lançada como consequência do Memorial Zumbi. É apenas um exemplo. Há outros, mas sem dúvida é um belo exemplo de como o Memorial Zumbi tem estimulado durante esses dez anos iniciativas de caráter semelhante, seja no resgate da verdadeira história do povo brasileiro, seja no resgate de capítulos essenciais de nossa luta social. 

Também não se pode deixar cair no esquecimento, neste breve apanhado da história do Memorial Zumbi, o aspecto encantatório, o aspecto mágico, que têm tido no Memorial essas peregrinações anuais à Serra da Barriga. Desde o dia da nossa primeira subida à Serra, em agosto de 1980, essa outra natureza do povo negro, que é o mágico, o encantatório, tem nos acompanhado. Naquela primeira ocasião algum de nós tiveram visões, outros se sentiram possuídos por orixás, alguns se sentiram tão fortemente comovidos que a partir de então sua vida ganhou novo sentido, como se houvesse ocorrido um novo nascimento. E, o que é mais importante e mais palpável, todos que têm subido a Serra da Barriga nessas peregrinações anuais regressam com uma nova energia que tem gerado frutos dos mais diversos em pessoas de todo o país. Cremos, mesmo que a peregrinação anual à Serra da Barriga é como um ritual de realimentação de nosso axé.

 

É preciso também fazer referência, para encerrar este breve apanhado da história do Memorial Zumbi, à presença de ialorixás e sacerdotes em geral do candomblé desde a primeira peregrinação à Serra em 1980, já que nós da diretoria do Memorial tivemos, a preocupação de convidá-los de integrar as celebrações do candomblé. Não se trata de uma discriminação a outros cultos, a outras formas de religiosidade. Trata-se do reconhecimento do papel integrador que tem o candomblé quando se está tratando da ancestralidade negra, do resgate do passado, do fortalecimento de nossa ligação com a natureza, com a terra, com a África, com as raízes da cultura afro-brasileira. O candomblé indiscutivelmente é, no Brasil, o principal depositário de toda essa herança, em que pesem suas transformações históricas e suas divergências emrelação à tradição dos orixás como ainda se pratica na África, na Nigéria. Na Serra da Barriga, estiveram presentes sacerdotes da tradição dos oríxas no Brasíl como Mãe Hilda, que permanentemente tem estado lá, assim como alguns pai-de-santo do próprio estado de Alagoas, da própria Maceió, do Rio de Janeiro, de Minas, do Nordeste (particularmente de Pernambuco). Essa presença da religiosidade afro-brasileira nas celebraçõesdo Memorial Zumbi tem dado a elas um alcance muito maior do que teriam se ficassem limitadas ao plano Político-ideológico. É como se o Memorial Zumbi tivesse se ungido, desde sua primeira hora, por essa densa religiosidade brasileira, com seu axé.

 

 

*Depoimento gravado em 1989, a pedido da organizadora deste volume. Elisa Larkin nascimento, e por ela transcrito e revisado.

 

 

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