Artigo

O negro como lugar

Publicação original: 1996por Joel Rufino dos Santos

 O NEGRO COMO LUGAR

  INTRODUÇÃO

Parece, hoje, indiscutível, à luz da ciência, que no caso dos seres humanos não haja raças. Em apenas um sentido, que Lévi-Strauss chamou "raças invisíveis", a antiqüíssima palavra quer dizer alguma coisa quando se refere a nossa espécie - são os conjuntos de freqüências genéticas que fazem, ocasionalmente, uma pessoa loiríssima estar mais perto de outra preta retinta do que de outra também loira.

Não há raças e entretanto há relações raciais. Paradoxo? Não. Na realidade, a expressão "relações raciais" acoberta outras relações, corresponde a um eufemismo. Racismo pode ser definido então como a imposição de relações de dominação disfarçadas sob a crença de que são raciais, isto é, de que há raças.

 Até aqui nenhum problema. Ocorre, porém, que os oponentes do racismo, a começar, no Brasil, pelos movimentos negros, valem-se do conceito de raça e, por vezes, na sua versão oitocentista. São racialistas anti-racistas. Falam em nome da raça negra e aos atributos negativos que o preconceito afirma serem dos negros contrapõem os seus atributos positivos. A luta organizada contra o racismo - pois disso se trata - justificaria o uso de um conceito cientificamente superado? Boa ciência é aquela que serve aos homens na luta pela justiça social?

Esse é o primeiro problema: Ciência e Política. Há, contudo, um segundo: no âmbito da Política, o racialismo não tem feito avançar a luta organizada contra o racismo. Pelo contrário, ele conduziu os movimentos negros a um beco sem saída. O item raça não saiu apenas do censo, saiu do jogo político e já nenhum círculo de poder se deixa impressionar pelas denúncias de racismo em si mesmas.

Freqüentemente, lideranças de movimento negro são acusadas de "racismo às avessas". A acusação tem algum fundamento uma vez que a tendência de encarar a questão étnico-racial em separado, despegada da estrutura social e das relações de poder político era, até recentemente, dominante entre aquelas lideranças. Ora, num país de incrível pauperização, marcado por insolúveis problemas sociais, a pretensão de destacar do social o que quer que seja suscita imediatas desconfianças.

As lideranças de movimento negro vêem-se, assim, sistematicamente obrigadas a combater em duas frentes: contra o mito da democracia racial e contra o estigma de "racistas ao avesso". E o que é pior, com uma arma duvidosa recolhida no arsenal oitocentista - a idéia de raça.

Como se não bastasse têm, aquelas lideranças, de enfrentar o reducionismo do pensamento convencional de esquerda, que só esporadicamente admite as interações raciais e étnicas. É o que explica a dificuldade, hoje amenizada, de os movimentos negros estabelecerem alianças com os agrupamentos marxistas. Aquele reducionismo, aliado à visão do "preconceito racial como resquício da escravidão", bem como à expectativa de que o desenvolvimento econômico tenda a neutralizar o fator raça/cor, encaixa-se perfeitamente, aliás, no arcabouço do mito da democracia racial, comprovando-lhe a eficácia e consensualidade. A democracia racial é, basicamente, o pacto nacional, supra-ideológico, de não considerar a interação racial como significativa. O movimento negro como tal é a ruptura desse pacto.

 Não por acaso, as alianças mais resistentes dos movimentos negros, na fase que começa com a Frente Negra, há sessenta anos, têm sido com o que se convencionou chamar de populismo - elas também uma ruptura de pacto; populismo no poder ou fora dele. É verdade que tão logo se instalou, o Estado Novo fechou a Frente Negra, como é verdade também que a vertente mais política do movimento costuma atacar duramente a manipulação das comunidades negras por chefes populistas. Foi, no entanto, sob a ditadura estado-novista que o maior número de negros, proporcionalmente, ingressou no aparelho de Estado; o Partido Trabalhista Brasileiro durante a sua primeira existência (1945-64) concentrou a maioria do voto negro urbano, oferecendo, mais que qualquer outro, legenda a candidatos negros, assumidos ou não; e, enfim, foi à sombra de um remanescente populista, Leonel Brizola, que, há poucos anos, o movimento negro - na definição lata e restrita - obteve seus maiores ganhos (Soares, 1984).

Temos, pois, um impasse, a saber: a categorização do negro como raça condena a luta organizada contra o racismo à ineficácia; e uma pista para escapar dele, a saber: a aliança do movimento negro com o populismo pode instituir os parâmetros para uma recategorização do negro.

 

POPULISMO REVISITADO

 

O que se convencionou chamar de populismo - constante de medidas concretas de governo, de uma ideologia, de uma estratégia de desenvolvimento econômico-social, de uma linguagem e de uma cultura - afirmou-se entre o final do Estado Novo e o golpe militar de 1964, embora seus antecedentes venham pelo menos desde a Revolução de 30. Há certo consenso de que foi, sumariamente, a forma política assumida pela sociedade de massas no País, legitimando a entrada das massas nas estruturas de poder e funcionando como mecanismo de politização delas.

Enquanto movimento (que permeou diversos partidos políticos, governos e lideranças) o populismo apresentou, em cerca de vinte anos, quatro modalidades principais que, como esfinges, desafiam a inteligência política brasileira: queremismo getulista, trabalhismo, juscelinismo e janguismo.

Até aí chega um certo consenso dos observadores. O que veio depois e como dar prosseguimento hoje ao que se costuma chamar democracia populista?

Creio haver, na atualidade, dois conjuntos principais de interpretação do nosso processo político que, embora não antagônicos, disputam a supremacia no auto-intitulado campo progressista. Primeiro, para os intérpretes situados no interior da ordem moderna (inclusive no lugar da classe operária), o populismo nada mais foi que uma etapa na história das relações entre as classes sociais no Brasil. A liquidação da democracia populista, consumada pelo movimento militar de 64, teria inaugurado a etapa presente de luta de classes disfarçada. Essa etapa chegará também um dia aos seus limites, quando o aguçamento das suas contradições abrirá condições para a instalação da democracia socialista, potencialmente anunciada por certos elementos da etapa precedente (o intervencionismo estatal, a planificação econômica, a política de massas, certos valores culturais etc.). Essa avaliação é que serviu de teoria à geração guerrilheira que, a partir de 1968, enfrentou a ditadura militar na América Latina e constitui, com um ou outro desvio, o balizamento teórico do Partido dos Trabalhadores (PT).

A segunda maneira de ver começa concordando que a democracia populista foi uma etapa vencida do desenvolvimento social e político do país, mas nega que tivéssemos passado - salvo no plano do desejo - a uma etapa subseqüente de aprofundamento da luta de classes. O que, sumariamente, teria ocorrido no Brasil após 64 e até hoje foi o aprofundamento da contradição entre ordens, ou estados: classificados (nas ordens moderna e oligárquica) versus desclassificados (ordem do povo).

Para essa segunda corrente, não se trata de negar, ingenuamente, a verdade das classes no Brasil; desde que houve aqui um padrão capitalista de acumulação (e isso houve desde a Colônia) tivemos obviamente classes. O equívoco, supõem os partidários daquela segunda maneira de ver, está em supor que classe é a forma preferencial de inserção no Brasil, no passado como no presente. Os fatos da sociedade brasileira - históricos, sociais, políticos, culturais - se organizam mais facilmente se utilizamos a categoria de inserção por ordem. Povo, por exemplo, seria uma ordem ou estado: grupo social instituído pela ausência de certos privilégios e certa maneira de estar no mundo (cultura). Estamos distante, nessa definição, do discurso político vulgar, o do hupokrisis e mesmo do sociológico comum, que dá o povo como sujeito da pobreza, e da vulgata marxista que o identifica com os produtores de bens materiais (com o quê ficam de fora funcionários e intelectuais, por exemplo). (Se bem, deve-se reconhecer, é também do marxismo o conceito de povo que leva em conta o seu desenho em diferentes fases históricas e, ao mesmo tempo, os seus traços permanentes: "Em todas as situações, o povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive" (Sodré, 1978:191)).

A essa luz, a idéia de que constituiríamos no Brasil uma sociedade de classes é uma espetacular" idéia fora de lugar", transplantada das ciências sociais do primeiro mundo nas quais fazia perfeito sentido. "Fora de lugar", esclareça-se, não quer dizer inútil. De um lado, a teoria da luta de classes serviu para orientar, desde o começo do século, sangrentas e gloriosas lutas pela justiça social; de outro, exercendo função contrária, tem servido para recalcar o sentido profundo dessas mesmas lutas, enrijecendo mecanismos ideológicos de dominação. Está nesse caso, por exemplo, a questão racial, como sabem os que lutam organizadamente contra o racismo e vêem seus esforços reiteradamente criticados no seio da esquerda como diversionistas da luta maior, a de classes.

 

 

GUERREIRO RAMOS

 

Para os que se dedicam à história das idéias políticas no Brasil há um fato intrigante: por que um pensador do porte de Guerreiro Ramos, desaparecido há menos de quinze anos, está esquecido? Esquecido, advirta-se, das editoras e cursos universitários.

A primeira explicação é que houve nos últimos quarenta anos um forte deslocamento das relações de classe entre nós e, conseqüentemente, mudou a pauta sociológica. (Outros brilhantes pensadores, como Nelson Werneck Sodré, mestre de uma geração inteira, teriam sucumbido a esse deslocamento). Há, contudo, uma explicação menos óbvia: Guerreiro foi um intelectual orgânico da democracia populista, talvez o mais original, e jaz sob a montanha da modernidade triunfante (vide Maio, neste volume).

 De fato, Guerreiro Ramos, como sociólogo e pensador do político, inscreve-se na base da segunda maneira de ver que apontamos acima. O marxismo não passou para ele, sobretudo nos seus últimos anos de vida, de uma" idéia fora de lugar". Para usar uma expressão da moda, ele foi um pensador seminal da democracia populista. Não se pode garantir que ele estava certo, nem os outros, mas diga-se a seu favor que a democracia populista é a nossa única linhagem político-ideológica original. Ou a negamos sumariamente, como em geral costumam fazer os convictos da modernidade como caminho único, ou nos valemos dela para elaborar novas estratégias de justiça social, na atualidade.

Guerreiro foi acusado, já em sua época, de negar a vertente psicológica do racismo. Eis a sua defesa:

 

A partir desta situação vital [negro e o povo no Brasil são sinônimos], o problema efetivo do negro no Brasil é essencialmente psicológico e secundariamente econômico. Explico-me: Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do País, como povo brasileiro, carece de significação falar do problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo. O negro é povo no Brasil. (Guerreiro Ramos, 1957: 157)

 

Portanto, ao invés de negritude, povidade. É possível que, se fosse vivo hoje, Guerreiro Ramos criticasse uma espécie de "sociologia de resultados", de corte norte-americano, que se esmera sadicamente em medir o "lugar do negro no mercado de trabalho", para chegar sempre à mesma conclusão, já dada no início, de que os negros ocupam os piores lugares e são os mais mal pagos dentre os brasileiros, com a mesma veemência com que criticou a "antropologia da negritude" do seu tempo, culturalista, medrosa de enfrentar a questão das relações de poder.

Os estudos sobre o negro e a questão racial desenvolveram-se muito nos anos após sua morte (1982), mas não o bastante, suponho, para encontrar uma fórmula melhor que a sua para essa equação dupla: não há raças, mas há relações raciais; e negro é povo, mas a luta contra o racismo necessariamente depende da afirmação de negritude. Sumariamente, esta foi a sua fórmula:

 

Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a susceptibilidade de ser valorizado esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal - eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil. (Guerreiro Ramos, 1957: 157)

 

Desse ponto de partida, desse lugar, eis o que ele pode enxergar:

 

Então, em primeiro lugar percebo a suficiência postiça do sócio-antropólogo brasileiro, quando trata do problema do negro no Brasil. Então, enxergo o que há de ultrajante na atitude de quem trata o negro como um ser que vale enquanto "aculturado", então, identifico o equívoco etnocentrismo do "branco" brasileiro ao sublinhar a presença do negro mesmo quando perfeitamente identificado com ele pela cultura. Então descortino a precariedade histórica da brancura como valor. Então converto o ‘branco’ brasileiro, sôfrego de identificação com padrão estético europeu, num caso de patologia social. Então, passo a considerar o preto brasileiro, ávido de embranquecer se embaraçando com sua própria pele também como ser psicologicamente dividido. Então, descobre-se-me a legitimidade de elaborar uma estética social de que seja um ingrediente positivo a cor negra. Então afigura-se-me possível uma sociologia científica das relações étnicas. Então, compreendo que a solução do que, na sociologia brasileira, se chama ‘o problema do negro’, seria uma sociedade em que todos fossem brancos.  Então, capacito-me para negar validade a esta solução. (Guerreiro Ramos, 1957: 156-157)

 

Para Guerreiro Ramos, negro não é, pois, uma raça (a rigor raça não existe), mas se fosse, a nada de progressista levaria tomá-lo como tal.  Negro é uma configuração social, um lugar que pode ser ocupado mesmo por não negros (assim como o lugar do branco pode ser ocupado por um preto ou mulato). Como se descreve este lugar?

As coordenadas para fixar o negro como lugar seriam: o fenótipo (crioulo), a condição social (pobre), o patrimônio cultural (popular), a origem histórica (ascendência, africana) e identidade, (autodefinição e definição pelo outro). A coordenada mais fraca é o fenótipo, uma vezque a maioria da nossa população tende para o escuro. Brasileiro é, como se deduz, o melhor sinônimo de negro; branco, um sinônimo de não brasileiro.

Estamos diante de uma radicalidade maior do que a de tomar o negro como raça discriminada em luta pelos seus direitos. Essa radicalidade consiste em apresentar o problema do negro como o problema do Brasil; e, consequentemente, abrir condições de inserir os seus problemas na agenda nacional. É uma radicalidade também no sentido em que produz duas críticas profundas: da crise brasileira e dos movimentos negros conforme se desenvolveram até hoje. Desse ponto de vista, desse lugar, os próprios movimentos negros são entendidos como produto da crise brasileira, a serem superados eles também dialeticamente.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GUERREIRO RAMOS, A., 1957. Introdução Crítica àSociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes.
SOARES, G. A. D., 1984. O charme, discreto do socialismo.
Jornal do Brasil, junho.

SODRÉ, N. W., 1978. Introdução à revolução Brasileira. 4ª ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas.

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