Artigo

O olhar de Ana

Publicação original: 2008por Joel Rufino dos Santos

Ana Cristina César, a poeta de A Teus Pés, certa vez foi a Roma com o pai (Valdo César, também escritor). Esta é dela: As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios. (Cartilha da Cura) Valo e Ana Cristina Subiram ao Monte Aventino, como todo turista. Súbito, Ana se desgarrou do grupo, sumiu de vista. Proura daqui, dali, Valdo se afligiu. Com meia hora, foi achá-la espiando, pelo buraquinho de um muro, as ruínas lá embaixo.

O que olhava Ana? Por que preferiu aquele buraquinho, se do belvedere, acotovelada com japoneses fotografadores, pordia ter uma visão panorâmica de tudo (o começo da Via Apia, a tumba de Nero, o Coliseu, a prisão de São Pedro) como os demais turistas? É que com a perspectiva larga, Ana só veria a História, teria lembranças de aulas e manuais. Olhando pelo irifício do muro, o olhar inventaria histórias: pessoas, criaturas. "Bichos da terra tão pequenos", como escreveu Camões.

Está começando na casa do pretor (e sumo pontífice) Júlio César a festa da Bona Dea, uma das deusas da fecundidade. Culto exclusivamente feminino, homem não entra nem assiste. Mistérios. Preside Pompéia, esposa de César, ambos de família tradicionalíssima. Um malandro, P. Clódio, que se deitava com as próprias irmãs, queria, agora, conquistar Pompéia. O que fez? Vestido de mulher, um longo branco, debruado de seda carmimi, coque à macedônia, se infiltrou na cerimônia. Uma criada, Laurissela, que a mulher de César trouxera da Farsália, desconfiou, deu alarma. De nada adiantou Clódio lhe enfiar na mão moedas de ouro. Pompéia ignorava o plano do sedutor? Já passara algo entre eles?

Foram imediatamente suspensos os ristos, Clódio expulso. Dia seguinte, foi só o que se falou nos mercados, no recesso dos lares, nos banhos públicos, entre pedreiros do grande teatro que se construía no sopé da Rocha Tarpéia, nas escadarias públicas e privadas (nenhuma cidade antiga teve mais escadarias que Roma, 18,5% das quais não conduzia a prédio algum). Até a um crucificado na estrada que sai para òstia foram incomodar com a malícia:"Ei, estás ouvindo? Precisas saber da última..."

César repudiou Pompéia, triste. Não quis testeminhar no processo, embriagado, ele tão infenso a libações. No vão central da pretoria, apertando os lábios finos, ditou estas palavras para o futuro:

"Repudiei minha desejável Pompéia porque a mulher de um grande homem além de honesta tem de parecer honesta". 

Do buraquinho no muro sobre o Aventino, a poeta Ana Cristina César sorri. 

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