Artigo

Os mortos permanecem jovens

Publicação original: 2001por Joel Rufino dos Santos

  

 JoelRufino

 

Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Membro do Comitê Científico Internacional do Programa Rota do Escravo, da Unesco. Últimos livros publicados: Quando eu voltei, tive uma surpresa, Bioética e sociedade brasileira (co-autoria), Gosto de Africa, O presente de Ossanha.

 

 

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Os mortos permanecem jovens

 

 

Para revelar o que sonho para o Brasil devo dizer primeiro que tipo de sonhador eu sou.

 

Sou um sonhador crítico, o que vale dizer que não tenho grande capacidade de sonhar. No entanto, não foi sempre assim. Quando era adolescente, embalado pelos romances da coleção Romances do Povo (Jorge Amado, Michael Sholokov, Jacques Romain, Alina Paim, John Steinbeck e outros) tinha sonhos vermelhos de felicidade para o povo. Eram romances realistas, em que a luta dos trabalhadores desembocava numa derrota sempre provisória, deixando o leitor, fechada a última página, embriagado com a Vitória Final. A derrota estava no livro, a vitória no tempo. (Me lembro até hoje de passagens de um deles, Os mortos permanecem jovens, de Anne Seghers, em que se narra o massacre dos jovens alemães e sua líder, Rosa Luxemburgo, pelo nazismo em ascensão. Os jovens massacrados, no entanto, permaneceriam jovens para sempre.) Minha adolescência passou.

 

Um sonhador crítico como eu trocaria a pergunta: o que desejo para o Brasil? O desejo possui um elemento ativo que falta ao sonho.

 

Desejaria, para começar, que os pobres não fossem miseráveis. Pobre é o que não possui riqueza material (casa própria, dinheiro no banco, plano de saúde etc.), o que não é em si uma condição desumana - embora o peso da privação material seja por vezes acerbo (não ter plano de saúde, por exemplo numa emergência). Miserável é o pobre que não luta contra a pobreza – o sujeito que, por exemplo, vê a vala negra na porta de casa e não se junta com outros pobres para resolver isso (pressionando a autoridade, fazendo mutirão etc.). Miséria, sim, é uma condição desumana. Outra maneira de dizer: pobre é o pobre junto; miserável é o pobre sozinho. A primeira condição evidencia uma contradição do sistema capitalista: a união dos proletários no seu interior a segunda, uma vitória desse mesmo sistema: o proletariado desunido, a cada indivíduo tendo de se haver isoladamente com as forças do mercado.

 

Não vejo a pobreza como mal nem a riqueza como bem – ou vice-versa. A grana, como diz Caetano Veloso em Sampa, é uma força que ergue destrói coisas belas. A pobreza, idem. A pobreza, no entanto, tem um charme indiscutível, já que produz a chamada cultura popular – a saga, o cordel, MPB, folguedos, a gíria, o carnaval, a arquitetura das favelas etc. A cultura brasileira, aquela que se opõe historicamente à cultura importada e exclusivamente popular: cultura da pobreza. Gilberto Freyre e outros chegaram a desejar a continuação da pobreza por amor à cultura popular. Ela é alegre (alguns a chama “cultura da festa”) não porque a tristeza está ausente das expressões populares, mas porque ali não se separa da alegria, não se especializa como na moderna cultura burguesa – hora de trabalhar hora de se trabalhar, hora de brincar hora de brincar.

 

Para superar a miserabilidade do povo brasileiro contamos, em primeiro lugar, com essa mesma força intrínseca da cultura, popular, isso não quer dizer apenas que o indivíduo miserável se humaniza quando toca um instrumento, pratica uma religião tradicional, inventa uma linguagem etc. quer dizer, principalmente, que os elementos, estruturais da cultura popular podem se transformar em elementos de transformação social. É possível, pelo menos teoricamente, converter a energia da cultura popular, em energia política. Pensemos, por exemplo, no espírito comunitário que está na base da cultura popular, a permanência da visão arcaica da pessoa humana (segundo a qual uma pessoa inclui além do indivíduo, a sua ancestralidade e a sua descendência) o seu comunismo etc

 

A quem deveria caber a tarefa de transformar a, energia cultural popular, em energia política? A um grupo técnico especializado em lidar, com cultura popular, de um lado, e idéias políticas, de outro -  o grupo dos intelectuais. Mas evidentemente um certo tipo de intelectual, que combine intelectual orgânico das culturas populares e o intelectual clássico, iniciado na cultura intelectual e política das classes dirigentes, O que verificou, até aqui, em nossopais, foi o estranhamento entre os dois tipos de intelectual: os orgânicos, saído do seio do povo, desconfiam dos outros; e estes, despreza os intelectuais populares.

 

Tive um colega, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, que pretendiaser poeta. No fim dos poemas, sob a assinatura, anotava: Inverno de 1962 ou primavera de 1963. Pode-se chamar a isso pedantismo (no meu colega, ingênuo) uma forma literária que o intelectual usa para se distanciar dos pobres. Naturalmente iletrados. O pedantismo é a sua identificação, o senhor a que sirvo não é o de baixo, mas o de cima, não é o comum, mas o exclusivo. O pedantismo é comum nos jovens intelectuais porque necessitam da investidura da categoria e ela só pode ser dada pela corporação já existente dos intelectuais. Desse jeito, o jovem pensador (poeta, prosador, crítico, filósofo etc.) se inscreve na tradição intelectual do seu país (ou da parte do Ocidente onde há invernos e primaveras, como meu colega).

 

A negação do pedantismo, no espírito dos intelectuais clássicos, é a compaixão. Não a pena pela sorte dos pobres, uma vez que ela é insuficiente para realizar a transformação de energia a que me refiro (da energia cultural do povo em energia política); nem tampouco a paixão romântica pela vida do povo, como nutriam os românticos do século passado, que só engendra angústia, e morbidez. A compaixão (co-paixão) é o convívio, ou práxis, dos intelectuais clássicos com os intelectuais saídos do povo. Uma convivência intencional, procurada, entre respectivos intelectuais orgânicos, capaz de gerar uma nova classe de pensadores híbridos. A esses caberia, como tarefa política, a conversão em força política da enorme energia armazenada na cultura popular.

 

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É ocioso fazer o balanço do século que passou, a não ser para descobrir as tarefas que ficam por terminar - que serão sucedidas no futuro por outras tarefas, de forma que sempre haverá Tarefas. É assim que termina “O reino deste mundo, do cubano Alejo Carpentier (um dos preferidos dos sonhadores no final dos 60): o homem é belo porque se impõe Tarefas afirmando seu compromisso com outros homens que viverão algum dia e que ele não conhece - já que no Além não há nada a realizar, tudo está para sempre dado.

 

O século chega ao fim no Brasil com uma nação inconclusa. O que significa isto? Que os elementos que definem uma nação moderna não completaram por aqui. Não concluímos a transformação da população quevive no Brasil em povo brasileiro. Se pode mesmo dizer que a verdadeirahistória do Brasil é o enorme e sangrento esforço que a população aqui reunida fez, em cinco séculos, para se alçar a condição de povo. Mesmo os fatores que, na visão convencional caracterizam uma nação - são tardios, só se completaram no século XX.

 

Ora, esse arraso repõe a seguinte questão: concluir a nação é um objetivo possível? Não falo da possibilidade subjetiva colocado no plano do desejo, mas da objetiva, determinada, pelas circunstâncias estruturais (infra e super) da história, contemporânea. Na hipótese, absurda de que o universo histórico (o espaço-tempo geo-histórico), no qual o Brasil é apenas uma galáxia, não se tivesse alterado nos últimos anos, ainda assim teríamos dificuldade em concluir a nação. Mas esse universo se alterou e, como dizem alguns, perdemos o bonde da história; o cavalo passou selado em nossa porta e não o montamos. É possível que a democracia populista de Getúlio e Jango desembocasse numa democracia efetiva, capaz de cumprir certas tarefas – como a reforma agrária e a desconcentração de renda, por exemplo. Foi esse, aliás, o desserviço que a ditadura militar nos fez: cortou a evolução política do país. Quando saiu o último general tivemos de começar de novo, só que numa situação de muito maior concentração de renda e sem reforma agrária. (No primeiro réveillon após o golpe de 64, o compositor Zé Kéti fez cantar: “Marchou com Deus pela democracia/ Agora chia../ Você perdeu a personalidade/ Agora fala em liberdade... Ai. Ó seu Oscar/ O que que há, o que que há? / Ai, dona Aurora, mas por que é que a senhora chora?”.  Essa Aurora é a nação.)

 

Do ponto de vista da cidadania, das questões sociais e da democracia, um marco na luta da população para se tornar povo brasileiro foi a Constituição já não poderão governar como antes. Os direitos sociais ali embutidos, sobretudo no plano do trabalho e do emprego, da justiça e da segurança, da posse e utilização da terra, da educação e da cultura, neutralizam privilégios históricos das ordens oligárquica e moderna que, por vezes unidas, por vezes separadas, se opõem à ordem do povo. Esses direitos representam ganhos dessa última.

 

Um desses direitos pode ser tomado como emblema. O artigo 68 das Disposições Transitórias manda a União expedir títulos de propriedade às "comunidades remanescentes de quilombos", que estiverem ocupando suas terras. Não se trata de um capítulo da reforma agrária, pois a titulação não será individual, mas comunitária. A comunidade toma-se aqui sujeito de direito: é ela e não o indivíduo que o Estado reconhece para efeito de apropriação da terra. Ora, a comunidade remanescente de quilombo é mais do que uma unidade produtiva (do tipo "posse útil da terra" e "distribuição partilhada da riqueza"), é uma forma diferenciada de organização do espaço, das riquezas naturais e da cultura (maneira de estar no mundo). Como resultado do reconhecimento constitucional desse direito, veio a demanda pelas titulações. Os Ministérios da Reforma Agrária e da Cultura, sem falar no Ministério Público, tomaram-se balcões de reivindicação do artigo 68 por parte de inúmeras "comunidades remanescentes de quilombos". Do Pará ao Rio Grande do Sul, o Estado, servidor quase exclusivo das ordens dominantes, se viu forçado à proteção da ordem do povo e num terreno que não lhe é habitual, o do respeito à diferença étnica, social e cultural.

 

A Constituição Cidadã, como foi chamada, é, pois, um signo do nosso avanço democrático. Está na coluna dos ganhos. Na das perdas, está o impacto das novas tecnologias de comunicação - o computador, a televisão, a Internet. Nenhuma delas confirmou a expectativa de que ajudariam a resolver problemas sociais. Antes pelo contrário, ajudaram a aumentar o fosso entre ricos e pobres. São, da maneira como se inseriram em nossa sociedade, máquinas de fazer egoístas empedernidos.

 

Tomemos a televisão. Em todo o mundo, os que lutam pela transformação social autoconsciente (para distinguir da transformação social espontânease vêem às voltas com seu formidável poder. No Brasil ele é muitas vezes maior. A televisão, graças a certas circunstâncias especiais, tem sido o empecilho mais forte àquela transformação: ela funciona como partido político conservador. Partido político é a instituição civil que mobiliza uma certa vontade coletiva difusa para alcançar ou manter o poder. É preciso que haja uma vontade de poder mobilizável; que haja uma organização especializada em mobilização; e que haja uma ideologia (conjunto articulado de idéias), produzida por intelectuais (os intelectuais orgânicos), visando concentrar e especializar aquela vontade difusa. O PPTB (Partido Político Televisão Brasileira) funciona exatamente assim. Darei um exemplo.

 

O futebol é uma paixão popular (vontade de poder) nacional. A cada quatro anos, nas Copas do Mundo, a tevê mobiliza essa paixão, potencializando-a pela palavra e pela imagem. Palavra verdadeira (os brasileiros jogam bom futebol) e palavra mentirosa (os argentinos, por exemplo, são catimbeiros). Mensagem final: os brasileiros unidos podem. Podem o quê? Ganhar Copas do Mundo. Pra que ganhar Copas do Mundo? Para nos sentirmos potentes. Pra que nos sentirmos potentes? Pra ganhar Copas do Mundo - e nada mais.

 

Essa manipulação da vontade de poder popular está a cargo de profissionais televisivos competentes. Eles correspondem aos grandes quadros políticosdos partidos comuns. É só lembrar do clima que o locutor Galvão Bueno cria ao transmitir um jogo, insignificante que seja, da seleção brasileira. Naquele momento, é um dos maiores políticos brasileiros. Mas, se entrevistado, dirá: não gosto de política. É um dos mais competentes intelectuais do Sistema, mas fará campanhas filantrópicas (como o Criança Esperança) criticando a incompetência dos políticos.

 

Porque uma das astúcias desse partido é fingir que não é partido. "O polvo", advertia Vieira, com aquele seu capelo, "parece um monge". A Igreja dominou por tantos séculos o Ocidente porque era um partido que não parecia partido. E também porque soube forjar uma unidade entre seus ideólogos (os monges, os teólogos, os exegetas) e o rebanho cristão. A filosofia dos teólogos virava normas de vida para a população - menos para as bruxas e os heréticos. A certa altura (Idade Média) era um partido perfeito, ninguém escapava dele. Isso se chama totalitarismo e é a marca dos grandes partidos da história: deixam ser parte (partido) para se imporem como o todo (totalitários).

 

Em conclusão: a tarefa progressista de completar a nação se complicou na atualidade. Tendo de se haver com um mundo globalizado (são significativas as metáforas para esse fenômeno: "aldeia global", "shopping center global", "economia-mundo"...) os intelectuais que lutam pela justiça devem repor velhas questões e propor novas estratégias. As novas tecnologias, em especial a televisão, surgem à nossa frente como desafios. Respostas da geração anterior envelheceram e não satisfazem mais. O próprio objetivo de concluir a nação deve ser reposto. Parece renascer com força o internacionalismo proletário da globalização anterior.

 

Os mortos, com efeito, permanecem jovens.

 

 

 

Uma personalidade brasileira?

Mário de Andrade.

Um período notável?

O da luta ativa contra a ditadura militar (1968-1988).

 

Um episódio que gostaria de esquecer?

O golpe militar de 64.

 

• Fatos/eventos/momentos decisivos?

Revolução Cubana, Vitória do Vietnam na guerra contra os EUA, Queda do Muro de Berlim, Desembarque na lua.

 

Uma novidade que mudou tudo?

A pílula anticoncepcional, a televisão, a revolução digital, o McDonald\'s em Moscou.

 

• Já se disse que somos (ou fomos) o país do jeitinho, e outras imagens semelhantes. Qual seria hoje o paradigmabrasileiro?

Competência das elites em manter a dominação, competência do povo em sobreviver a essa dominação, eficácia da ideologia da democracia racial. O paradigma mais representativo é a eficácia cruel das formas de dominação simbólica (como a alienação televisiva).

 

• Algo/alguém que sintetiza o que é Brasil?

O ex-senador Luís Estevão.

 

• Um talento e um defeito (ou mania) bem nacionais?

Talento: "se virar". Defeito: retórica política.

 

Um exemplo made in Brazilpara o próprio Brasil dar valor?

A luta de parte da juventude contra a ditadura militar pelo socialismo, entre 68 e 75.

 

• Para você, o que significa: modernidade, desenvolvimento, competitividade, globalização, tecnologia de ponta, ética, justiça social?

Num país de tanta exclusão, muitas novidades são na prática mais e mais injustiça social. Ética e justiça social são valores que contrastam, pela solidez, com esses modismos.

 

• Se pudesse escrever de novo um episódio da história do Brasil, qual seria? E como ficaria, em sua versão?

O golpe de 64. Na minha versão, teríamos a vitória da esquerda.

 

 

 

 

 

 

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