Artigo

Tardes frias de saudade na Bolívia

Publicação original: 2007por Joel Rufino dos Santos

Em 1964, com o golpe militar, centenas de brasileiros se exilaram. Buscava-se asilo numa embaixada estrangeira, penava-se um tempo de espera burocrática (às vezes política) e ia-se viver no país escolhido.

Na embaixada da Bolívia éramos uns 50. Um dia foi nos visitar o Zé Kéti (Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor), correndo o risco de ficar marcado. No réveillon de 1965, faria um dos seus muitos sucessos, uma marcha antiditadura:

Marchou com Deus pela Democracia

Agora chia, agora chia...

Você perdeu a personalidade

Agora fala em liberdade...

Era uma vingança bem-humorada contra os partidários do golpe contra Goulart que, no Rio e em São Paulo, tinham feito grandes marchas contra a "comunização" do País.

Na Bolívia, cada um se virava como podia. Fui meia-direita do Municipal de La Paz (o técnico também era brasileiro exilado). Um dia, o Botafogo, com Garrincha e tudo, foi jogar lá. Avisaram ao técnico João Saldanha que enfrentaria dois problemas: a altitude e El Negro. Saldanha pediu mais informações. Ficou desconfiado. Quando me viu entrar, relaxou: "Conheço este El Negro. É o Joelzinho, da faculdade de Filosofia. Não vai nos trair. É do Partido".

No Gran Hotel de La Paz, fazíamos discussões memoráveis. Um líder operário defendia, como sempre, uma opinião só dele. Para não deixar dúvida de que seria esse seu destino, seu pai o registrara como Lênin Stálin de Oliveira (ou dos Santos, algo assim). Não adiantava prolongar a reunião, a polícia boliviana pusera um espião para nos acompanhar (acabamos nos dando bem com o cara). Além do mais, Lênin Stálin não arredaria um milímetro (como sempre) do seu ponto de vista.

Foi aí que alguém pedeu a paciência:

- O problema, companheiro, é que pra você é Deus no céu e Stálin na Terra.

Um curto instante de vacilação. E a reação:

- Deus no céu, não, que Deus não existe!

No Gran Hotel, também exilados, viviam de Juca de Oliveira e Gianfrancesco Guarnieri. Desciam uma ladeira, atravessavam o vale do Chuquiago, contemplavam um instante a neve eterna do Illimani a 6.462 metros de altura. Subiam de nobo, chegavam ao Palácio Quemado (Plaza Murillo), abriam ma valise com roupas usadas e camelavam com seu talento de atores. As gorjetas de torcedores do Municipal me rendiam menos do que as suas gravatas e calças.

Até que numa tarde de muito frio e saudade, Guarnieri nos contou sobre a fundação de La Paz. Um espanhol cavalgava pela borda do desfiladeiro em cujo fundo jaz a cidade. BOrracho, sofria com fome, sede, falta de mulher. Apontou cá pra baixo: "Deixe estar que me vingo. Vou fundar uma cidade lá embaixo". (La PAz, a 4.082 metros de altitude, foi fundada, de fato, por Alonso de Mendoza, em 20 de outubro de 1548).

É talvez o único lugar na Terra em que o aeroporto fica acima da cidade.

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