Artigo

U’a Mulata Lusitana na origem do Brasil Moderno

Publicação original: 2002por Joel Rufino dos Santos

U’a Mulata Lusitana na origem do Brasil Moderno

 Na passagem do século 19 para o 20 apareceram no Brasil três grandes romances:  O cortiço, de Aluísio Azevedo, Bom crioulo, de Adolfo Caminha e D. Casmurro, de Machado de Assis, respectivamente em 1890, 1895 e 1900. Que fôssemos capazes de apresentar grandes obras literárias a um intervalo exato de cinco anos, diz da criatividade da literatura brasileira, é certo. Mas diz também de outras coisas que espero discutir nesse pequeno ensaio.

 As relações entre literatura e história, bem como as potencialidades heurísticas do conhecimento literário, foram discutidas amplamente pelo menos desde o final do século XVIII. Superada a concepção mecanicista da literatura como reflexo, podemos considerá-la como um novo objeto, um campo inteligível do conhecimento histórico e social - e, portanto, favorável à compreensão (no caso em questão) da transição da escravatura para o sistema de trabalho livre. Tomo o conhecimento literário como um saber histórico de natureza particular, específico, distinto do conhecimento propiciado pelas histórias econômica, social e política.

 Pode a crítica literária dar a compreender algo além do que estudos históricos já compreenderam? Não se trata de especular, mais vez, sobre a competência de informante sociológico da literatura. A sociologia da literatura, disciplina com método e objetos próprios, busca em última análise compreender o universo literário pelas circunstâncias sociais e vice-versa. Não se trata disso. Trata-se de saber aqui se a ficção desvela alguma parte do real social que as disciplinas sociais, por alguma limitação de seus objetos e métodos, não alcançam. A minha hipótese é que, no caso do Brasil, somente a ficção desvela a vida do povo - aquela parte da sociedade que não fez a passagem para o padrão de acumulação moderno e capitalista, a humanidade que "se vira". A literatura seria, nesse caso, a verdadeira história do pobre - assim como a música popular, o enredo das escolas de samba, a arquitetura e a decoração dos mocambos, a literatura oral - porque o institui como sujeito desejante. Nas histórias nacionais os pobres não se encontram como sujeitos, mas como coisas, emblemas, espécie de lixo pedagógico para exaltação da ordem e progresso nacionais. A história completa de um país está inscrita na sua Literatura - esse cortejo de fantasmas - e não na sua História que, junto com a moral, internou1em papéis amarelecidos os testemunhos das "classes perigosas".

 A literatura, mesmo quando escrita por não-pobres (o que no Brasil quer dizer também não-negros), memoriza pela fala e pelo silêncio as experiências dos pobres. Que além de fazer isso, ela desvela o que permanecia encoberto, pondo em relação (no caso) os dois padrões de acumulação em que se reparte a sociedade brasileira - desconstruindo dessa forma a ideia hegemônica de Brasil - é que espero mostrar pela análise dos três romances referidos.

 Marc Bloch, o medievalista francês que lutou contra a ocupação nazista do seu país, pouco antes de ser fuzilado pela Gestapo, teve um momento de absoluta sinceridade. Para que estudar história se a barbárie está sempre triunfando? A história dos homens talvez só ensine uma coisa: com ela não se aprende nada. Os jovens latino-americanos que, nos anos 60, tentaram repetir nos seus países a Revolução Cubana descobriram, sob tortura, que ela era irrepetível: não se formando jamais outra vez a combinação de fatores nacionais e internacionais - que a tornaram possível naquele momento, e não em outro, ela nunca se repetiria. Não podendo a história se repetir, o que se aprende com um fato não pode ser usado como lição ou experiência para viver outro fato, mesmo semelhante. Bloch concluiria, algo desalentado, que a história pelo menos diverte. Diverte, quer dizer: põe você no lugar de outros homens e mulheres que viveram em outros tempos e em outros lugares, lhe permitindo viver as experiências que eles viveram. E daí? Cada vez que você vive uma experiência por outro, você se acrescenta de humanidade. Se torna mais gente humana e isto talvez seja, estranhamente, o máximo a que nós seres humanos possamos aspirar.

 

Uma pobre cadela sem dono

 O Cortiço (1890) entrelaça a vida de três imigrantes portugueses: Jerônimo, trabalhador forte e honesto, João Romão e Miranda, capitalistas prósperos e hipócritas. À sua volta,a humanidade brasileira com que interagiam. Cortiço ou cabeça-de-porco era, até há pouco tempo, o nome das habitações coletivas populares do Rio de Janeiro, sobrados burgueses degradados ou vilas de pequenas casas para issoconstruídas - num e noutro caso antecessoras da atuais favelas. O cortiço, com sua gente mestiça e promíscua, suas dores e suas lutas,tristezas e alegrias, sua consciência e alienação, seu orgulhode ser e seu bovarismo, seu cheiro de peixe frito e "sambas de arrasar", sua generosidade, crueldade e sedução irresistíveis, é um "Brasil pequeno".

 Jerônimo, o português bom, se divide entre o amor rotineiro da esposa patrícia e os braços da mulata Rita:

 "[Jerônimo] viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua cama de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça [pareciam] cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher"2.

 O fecho do romance é patético e irônico. Bertoleza, a preta que enriquecera um dos portugueses maus, João Romão, servindo-o na cama e na cozinha, limpando e fritando peixe que o português vendia à vizinhança, é devolvida ao verdadeiro senhor. Romão a enganara anos a fio, não lhe comprara a liberdade como fazia crer, agora ia casar com uma mulher da sua categoria e cor e se desfazia dela. Bertoleza está agachada limpando peixe como sempre. Romão chega com o legítimo proprietário de Bertoleza, aponta-a, ela compreende tudo imediatamente, rasga a barriga com a afiada faca. Mas ainda não acabou. Batem à porta. É uma Comissão Abolicionista que vem entregar a Romão um título de benemérito da campanha contra a escravidão.

 

Esse romance foi esquadrinhado pela crítica da cabeça aos pés. Ela lhe aponta, em geral, diversas virtudes, prejudicadas, no entanto, pela subserviência à crença naturalista de que o animal homem tem seu destino, em quaisquer circunstâncias, determinado pela hereditariedade, além de um certo abuso do grotesco - como aquele episódio em que Pombinha, condenada pelo sangue à prostituição, adormece numa pedreira e, sonhando com uma borboleta de sangue, menstrua pela primeira vez.

 O D. Casmurro (1900), de Machado de Assis, é a história de uma traição descoberta (ou suspeitada) a posteriori. Bentinho, rico e conservador, casa-se com Capitu, pobre e irrequieta. Capitu morre prematuramente e Bentinho, através da semelhança física entre o filho e o compadre Escobar, se convence de que o menino não é seu, mas de Escobar. A história é contada em primeira pessoa, infância, colégio, o quase ingresso no seminário, casamento, amizades, traição - tudo se passa na cabeça do D. Casmurro. Casmurro é sério, melancólico, depressivo. Mas é sobretudo - e por aqui começo a dizer o que queria - um tipo patriarcal, membro daquela classe de proprietários de terras e de escravos que foi dominante e dirigente no Brasil até cerca de 1930.

O livro de Machado de Assis retrata esse patriarcalismo, que vincou fortemente a sociedade brasileira, e não apenas a sociedade rural, por quatro quintos do tempo que ela tem de existência. Patriarcalismo entendido como o poder absoluto do macho branco sobre todos os que habitam o seu domínio - familiares de sangue, agregados, empregados livres, servos indígenas ou mestiços, escravos. O narrador de D. Casmurro é um patriarca urbanizado, em cuja mentalidade coisas e homens devem girar à sua volta, disponíveis para servi-lo na cama e na mesa sempre que desejar. Ainda hoje, leitores desse livro se empenham em resolver o "enigma de Capitu": traiu ou não traiu o marido? O enigma foi a "armadilha" deixada por Machado. Como a suspeição que pesou sobre a mulher, só existe na cabeça de um senhor patriarcal - a quem tudo e todos devem pertencer como um objeto - eis-nos metidos na pele do amo. Os leitores inadvertidos de hoje revivem – Bloch diria "se divertem" - no drama de Bentinho a experiência humana do patriarcalismo.

 Bom crioulo (1895), a seu turno, é a história de um casal homossexual, um marinheiro negro, forte e bom, e outro branco, Aleixo, frágil e egoísta. O primeiro cenário é um navio da esquadra brasileira - que só aboliu o açoite em 1910 como resultado de uma séria rebelião de marinheiros, dita Revolta da Chibata, também famosa por seu líder, o Almirante NegroJoão Cândido3. O segundo cenário são as ruas em volta do porto, os freges, as pensões humildes, sua gente triste e alegre, trabalhadora e vadia, branca e preta. Corre bem essa crônica dos pobres amantes4 até surgir a portuguesa Margarida, dona de pensão, provocante na sua meia idade, braços cheios, muito brancos e apetitosos. Aleixo é seduzido por ela e acaba por trair Bom Crioulo com a cachopa, o negro descobre, mata Aleixo. Como fera é arrastado pela polícia naúltima cena do romance.

 

O tema diz respeito ao negro que constituía, então, a maioria da população brasileira, sua dolorosa adaptação à sociedade de classes, entendida esta como a organização social que, desde o fim do século 19, se ergueu sobre o padrão capitalista de acumulação. Diz respeito, igualmente, ao português, enquanto antigo colonizador e formador do que se convencionou chamar povo brasileiro. Desde cerca da metade do século XX, com efeito, e vencida a etapa das lutas pela independência, a inserção do português na sociedade nacional passou por algumas mudanças. Já não era o "cabra", o "pé-de-chumbo", que se culpava pelas desgraças da vida. Ele é agora o "portuga", o "Manuel-e-Joaquim" protagonista de um novo gênero de literatura oral, a piada.

 É nesse quadro em mudança que se deve situar O Cortiço (seus três portugueses envolvidos com negros e seus portugueses em ascensão), D. Casmurro, seus patriarcas inseguros e seus agregados "de favor", e Bom-Crioulo, seus negros e portugueses em estado de paixão.

 

Aquele foi, com efeito, um momento de inflexão da sociedade brasileira. O trabalho escravo, que vigorara quase absoluto por mais de trezentos anos, cedera lugar a pelo menos dois padrões de acumulação (como dizem os economistas) distintos, mas complementares. O mais visível é o que veio a dar, em desdobramento contínuo, no Brasil capitalista e moderno de hoje - o Brasil das indústrias, das metrópoles, do grande comércio, dos bancos, das companhias de seguro, voltado para o mundo. O outro, que veio a dar num país pouco capitalizado, igualmente visível mas volta - do sobre si mesmo, de economia dita informal, o das pequenas cidades, dos subúrbios, do subemprego. Foi também aquele o momento em que se elaborou a ideia de Brasil que está nos manuais didáticos, no discurso dos políticos, nas exposições de museus - imagem-clichê do país, da ordem do desejo (que é o desejo da ordem) e não da ordem do real.

 Sobre o primeiro país é que se aplicaram, quase exclusivamente, as pesquisas e estudos históricos. A exclusividade conferiu a esses estudos o seu ar de falsidade, ou de desencaixe - ou, ainda, como já se chamou com propriedade, de "ideias fora de lugar". Somente a literatura, sendo um arquivo dos afetos e das paixões, pode realizar a clássica recomendação de Taine: dizer o que os simples fatos não dizem.

 

Podemos voltar a Bom-Crioulo.

 

O autor, Adolfo Caminha, conheceu a tragédia cedo: perdeu os pais na grande seca nordestina de 1877. Criado por um tio no Rio de Janeiro, entrou para a Escola Naval com 13 anos, de onde saiu segundo-tenente. Em 1886, regressando ao Ceará, seu estado natal, raptou a mulher de um alferes. Obrigado a dar baixa por esse escândalo, terminaria vida como modesto funcionário público na capital da República. Tuberculoso, morreu aos trinta anos. A experiência na Marinha foi sua melhor matéria-prima, Caminha não conseguiria, nos outros romances, uma ficção mais realistae convincente que em Bom-Crioulo5. O romance se abre com uma cena de chibatamento no convés de uma corveta da Marinha:

 “Herculano já não suportava. Torcia-se no bico dos pés, erguendo-se os braços e encolhendo as pernas, cortado de dores agudíssimas que se espalhavam por todo o corpo, té pelo rosto, como se lhe rasgassem as carnes. A cada golpe escapava-lhe um gemido surdo e trêmulo que ninguém ouvia senão ele próprio no desespero de sua dor".6

 

Até 1910, com efeito, vigorou o castigo corporal na Marinhabrasileira. O mais comum era a chibata (ao Herculano, por exemplo, couberam vinte e cinco. Sua falta: flagrante de masturbação). Eisa primeira ousadia do romance de Caminha: de descrever, tornar visível a tortura de pobres no interior da arma que, mais que o Exército, orgulhava o estado-nação. A Marinha, então, era aquilo? Teve a coragem também de tocar num dos nossos tabus mais renitentes, quase um mito de fundação: a democracia racial, suposta harmonia entre as três grandes raças constitutivas do país. A suprema ousadia, porém, foi construir um romance em cima de tabu: o homossexualismo.

 O romance de Caminha casava, desse jeito, tortura, racismo e homossexualismo. Cumpriu aqui a epígrafe famosa de A Relíquia: sobre a nudez forte da verdade - o manto diáfano da fantasia. Eis o retrato da cachopa Margarida:

 "D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na rua da Misericórdia somente a pessoas de "certa ordem", gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... não fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou a profissão do sujeito. 

Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a mesmíssima coisa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo aos outros.

Vivia de sua casa, de seus cômodos, do aluguelzinho por mês ou por hora. Tinha o seu homem, lá isso pra que negar? Mas, independente dele e de outros arranjos que pudesse fazer, precisava ir ganhando a vida com um emprego certo, um emprego mais ou menos rendoso para garantia do futuro. Isso de homens não há que fiar: hoje com Deus, amanhã com o diabo.

Quando moça, tinha seus vinte anos, abrira casa na Rua da Lampadosa. Bom tempo! O dinheiro entrava-lhe pela porta em jorros como a luz do dia, sem ela se incomodar. Uma fortuna de jóias, de ouro e de brilhante! Já era gorducha, então: chamavam-na Carola Bunda, um apelido de mau gosto, invenção da rua ...

Depois esteve muito doente, saíram-lhe feridas pelo corpo, julgou não escapar. E, como tudo passa, ela nunca mais pode reerguer-se, chegando, por desgraça, ao ponto de empenhar jóias e tudo, porque ninguém a procurava, porque ninguém a queria - pobre cadela sem dono... Passou misérias! Até quis entrar para um teatro como qualquer coisa, como criada mesmo. Foi nessa época, num dia de carnaval (lembrava-se bem!), que começou a melhorar de sorte. Um clubezinho pagou-lhe alguns mil-réis para ela fazer de Vênus, no alto de um carro triunfal. Foi um escândalo, um "sucesso": atiraram-lhe flores, deram-lhe vivas, muita palma, presentes - o diabo!
Durante quase um ano só se falou de Carola, nas pernas da Carola, na portuguesa da Rua do Núncio. A pobre mulher narrava isso com lágrimas e suspiros de profunda e melancólica saudade, e repetia - Bom tempo! Bom tempo!

 Esteve duas vezes amigada, tornou a cair doente, foi a Portugal, regressou ao Brasil cheia de corpo e de novas ambições, amigou-se outra vez, e, afinal de contas, depois de muito gozar e de muito sofrer, lá estava na Rua da Misericórdia, fazendo pela vida meu rico!, explorando a humanidade brejeira, enquanto o seu "macacão" trabalhava por outro lado em, negócios de carne verde e fornecimento para os quartéis".7

 Carola Bunda, como se vê, ocupa o lugar social que no Brasil chamamos mulata: vida instável, sensualidade desabrida, bunda grande. Mulata, no Brasil, é a mulher que junta a beleza da branca com a facilidade da negra. Uma negra de primeira ou uma branca de segunda, se quisermos. Não é uma raça, nem mesmo uma mestiça ou híbrida: é um lugar instaurado por duas coordenadas, uma que sai do plano real, outra que sai do plano imaginário. Seu know-how é a sedução, quando a exerce bem sobe na vida, quando não, desce.

 Carola Bunda é o componente português na formação da ordem do povo. A velha classificação de ordens, aplicada à sociedade brasileira, distingue três ordens principais: a oligárquica (que se confunde com a aristocracia rural, a que pertenceria, por exemplo, Bentinho, o senhor de D. Casmurro), a moderna (que se confunde com as classes industriais, a burguesia e a média ilustrada, por exemplo, aquela família que Mário de Andrade criou em Amar verbo intransitivo, que contrata preceptora alemã para resguardar o filho de pretinhas e prostitutas) e a do povo (que se confunde com os semiproletários e desclassificados sociais, por exemplo, a mulata Rita, de O Cortiço, ou essa Carola Bunda, da Rua da Misericórdia).

  

1 Como se fez, nos tempos modernos, com os doentes psiquiátricos.

2AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço. Rio de Janeiro, Otto Pierre Editores, 1979, p. 109.

3Tive a ventura de conhecer pessoalmente João Cândido, 1962 ou 3.

4Referência a um dos meus romances preferidos, Crônica de pobres amantes, do italiano Vasco Pratolini.

5Seus outros livros, Cartas Literárias (I 895), A Normalista (1893), Tentação (1896).

6CARMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo, São Paulo, Ed. Ática, 5 edição, 1997, p.16.

7CAMINHA, Adolfo. Op, Cit., p. 44.

 

 

 

 

 

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