Entrevista

Entrevista com Luciano Trigo para o G1

Publicação original: 29/10/08por G1

Espectador engajado das últimas quatro décadas da vida social e política brasileira, o historiador e professor de literatura Joel Rufino dos Santos faz em suas memórias – Assim foi (se me parece) (Rocco, 184 pgs. R$23) – um balanço pessoal e deliberadamente subjetivo de sua geração.

Criado no subúrbio do Rio de Janeiro, Joel Rufino tinha 13 anos quando as aulas na escola foram suspensas, após a notícia do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. O intenso debate político que se seguiu no país não empolgou o adolescente que sonhava ser astrônomo. Dez anos depois, foi bem diferente: apaixonado pelas obras do militar e historiador Nelson Werneck Sodré, com quem viria a trabalhar no ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), ele já estava mergulhado no engajamento político quando o golpe militar tirou João Goulart do poder.

Por ter participado do livro História nova do Brasil, que propunha uma ousada reforma no ensino da disciplina, e por seu posterior envolvimento com a ALN – Aliança Libertadora Nacional, organização revolucionária comunista criada em 1967 para combater o regime militar, Joel Rufino foi preso e exilado. Hoje, além de ativista do movimento negro, Joel Rufino propõe outra reforma: a do ensino da literatura, tal como expõe em outro livro recém-lançado, Quem ama a literatura não estuda literatura.

G1: O memorialista é sempre 100% sincero ou é também um pouco mentiroso? Em que medida existe alguma ficção nas suas memórias?

JOEL RUFINO DOS SANTOS: O título Assim foi (se me parece) já sugere que não creio em memória “verdadeira”. Há uma diferença, uma lacuna entre falar e dizer, aí se instala a memória. Os fatos que relato aconteceram, mas para outros que os viveram significaram outras coisas. Mesmo os livros de História andam cheios de ficção, no sentido em que todo relato introduz uma subjetividade. Com mais razão ainda num livro como o meu.

G1: Sua infância, no subúrbio carioca de Cascadura, foi marcada pela leitura da Bíblia, das revistas em quadrinhos e das histórias que sua avó contava. Que impacto esses três elementos tiveram na sua vida?

 

RUFINO: Como tantos escritores eu tive alguém, na infância, que me viciou em histórias. Lia gibis escondido, o que, possivelmente, ampliou o seu fascínio. E a Bíblia, ao invés de tomá-la como livro sagrado, tomei-a como livro maravilhoso de histórias, e como manual de estilo. Tudo se passou em Cascadura e Tomás Coelho, subúrbios antigos do Rio, onde se pode ser feliz ou infeliz como em qualquer lugar.

 

G1: – Que livros foram mais importante na sua formação, já a partir da adolescência?

 

RUFINO: Filho nativo, de Richard Wright; Casa Grande & senzala, de Gilberto Freire; O Ateneu, de Raul Pompéia; Terras do Sem-Fim, de Jorge Amado; O escravo, de Hall Caine; O tempo e o vento, de Érico Veríssimo; o Manifesto comunista, de Marx e Engels… A lista é comprida. O decisivo não é o livro em si, mas a altura da vida em que você o lê. Esses foram os  do começo da minha juventude.

 

G1: Você viveu exilado no Chile e na Bolívia após o golpe de 64. Conte alguns episódios e encontros que o marcaram, no exílio.

 

RUFINO: Dos poucos meses que passei na Bolívia, me impressionou a mudez de seus índios. Logo compreendi que era uma defesa antiga, vinda da época da Conquista: eles só eram mudos com os que vinham de fora. O altiplano, para brasileiros, é fantástico: as neves eternas, os lagos gelados, as aldeias esparsas… Vi de perto a combatividade das suas lideranças camponesas. Quanto ao Chile, se tornou minha segunda pátria, embora me sinta internacionalista. Ali conheci Thiago de Mello, nosso adido cultural na época, um semeador de amizades. Tínhamos um time, o Pedaço de Mundo. No Chile conheci também Pelé, que tem a minha idade, numa excursão do Santos. Achei que se, além de tudo, ele fosse politizado, seria Deus.

 

G1: Após voltar ao Brasil, veio a prisão. Que resumo pode fazer dessa experiência?

 

RUFINO: Voltei do exílio em 1966. Até 1972, conhecei prisões breves e leves. De 1972 a 1974, cumpri pena da Justiça Militar. Passei pelo Doi-Codi, em São Paulo, assisti à morte na tortura de Carlos Nicolau Danielli, vi e ouvi dezenas de outros presos sendo torturados. Tive o meu quinhão de socos e choques elétricos, mas não conheci o pior, a “cadeira do dragão”. É uma experiência inenarrável, no limite do humano. Quem a experimentou, em si ou nos companheiros, não sabe dizer qual é a natureza do torturador. Agora que a Justiça começa a julgá-los, alegam que torturaram em defesa da pátria. Que criaturas são essas?

 

G1: Por que exatamente você foi preso? Que papel teve na ALN?

 

RUFINO: Meu papel na ALN era modestíssimo: apoio a combatentes armados. Depois de ficar na prisão quase dois anos, fui beneficiado com livramento condicional. As personagens mais marcantes lá dentro foram, para mim, alguns presos comuns, ladrões, assaltantes, traficantes, um ou outro homicida passional. Todos me deixaram a sensação de vidas desperdiçadas, embora ninguém saiba dizer o que é uma vida aproveitada. Quase acreditei que o crime era a única aventura possível sob o capitalismo. Assisti a uma fuga de cinema: um condenado a 300 anos saiu pela porta da frente, sob a identidade de um preso correcional.

 

G1: Seu livro resgata o valor do “General Sodré”, Nelson Werneck Sodré, para a historiografia da literatura brasileira. Fale sobre ele.

 

RUFINO: Nelson Werneck Sodré não entrou para a História como general do exército. Entrou como intelectual, o mais influente no começo dos anos 60. Por 25 anos foi crítico literário semanal, publicou obras como História da literatura brasileira, História da imprensa no Brasil, História militar do Brasil, História da burguesia brasileira, que são referência obrigatória até hoje. Fui seu aluno e assistente no ISEB, o mais influente centro de estudos da época, fechado pela ditadura. Ele foi um trabalhador intelectual incansável e uma pessoa modesta, apesar da influência que teve.

 

G1: Você também lançou recentemente o livro Quem ama a literatura não estuda literatura. Que mudanças propõe no ensino da literatura, e por quê?

 

RUFINO: Minha proposta de mudança do ensino universitário da literatura é que se enterre de uma vez o baixo estruturalismo em que se meteu nos últimos 30 anos. A literatura é um capítulo da cultura, este é o seu significado. Tratá-la como um significante referido a uma estrutura, de qualquer tipo, leva um beco sem saída. A literatura não é uma especialização, mas um existencialismo. Os cursos de Letras tendem, na atualidade, a funcionar como depósito de vestibulandos não-aprovados para outros cursos. A literatura é boa demais para este fim melancólico.

 

G1: Nos últimos anos o debate sobre racismo tem crescido no Brasil. Como avalia esse tema, especialmente em relação à questão das cotas?

 

RUFINO: A ação afirmativa, que serve de base aos sistemas de cotas regionais, raciais, de gênero etc é um princípio democrático. O Estado corrige injustiças ao estabelecer condições justas de concorrência na luta pela vida. Sou, portanto, a favor, embora reconheça efeitos colaterais indesejáveis na aplicação do sistema. Mas um jovem branco que se sinta preterido pelas cotas é, por isso mesmo, capaz de entender a histórica preterição do negro na universidade, na diplomacia, na política e na iniciativa privada.

 

G1: Você já ocupou alguns cargos políticos. Que lições tirou dessa experiência? E como analisa a política brasileira hoje?

 

RUFINO: A política é uma dimensão básica do meu ofício de escritor. Penso como Brecht: é melhor partir das coisas novas e boas que das antigas e ruins. A possibilidade de fazer política – votar para prefeito numa cidade como o Rio, por exemplo – está sempre colocada à nossa frente. A luta entre o velho, que teima em sobreviver, e o novo, que quer viver, é o fundamento da luta política.

Originalmente publicado em http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2008/10/29/entrevista-joel-rufino-dos-santos/

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